*Gabryella Garcia, especial para o Congresso em Foco
Como uma forma de resistência e de garantia da defesa das pautas da comunidade trans, o número de candidaturas de transexuais e travestis explodiram no Brasil em 2020. Com um aumento de 273% em relação às 83 candidaturas registradas no último pleito municipal, o número chega pelo menos a 310 em 2020 de acordo com levantamento realizado pelo Congresso em Foco.
Esse aumento mostra “uma preocupação de ter representatividade e uma resposta contra o governo Bolsonaro”, diz Mariana Franco, mulher transexual e candidata à vereadora em Florianópolis (SC) pelo PCdoB.
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Há dez anos o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo de acordo com a pesquisa Trans Murder Monitoring (TMM), e os discursos de ódio e ‘piadas’ homofóbicas de Bolsonaro, apenas reforçam e chancelam a violência.
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“Vejo isso como uma resposta para tudo o que vem acontecendo desde 2018”, avalia Luana Rayalla, mulher, preta, trans, PCD (pessoa com deficiência) e candidata a vereadora em São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Luana sofre com o preconceito de diferentes formas e concorrer no pleito municipal foi uma forma encontrada para lutar contra as opressões diárias.
Publicidade“Sou negra, travesti e PCD, toda a minha história já me torna um ser político. Depois da eleição do Bolsonaro me tornei um ser político e partidário porque isso chocou o campo progressista”, disse.
A candidata também se sentiu motivada para desconstruir uma imagem que existe na sociedade de que pessoas LGBTQ+ só falam dessas pautas. “Eu posso sim representar pessoas que não sejam LGBTQ+, vim com essa pegada de desconstrução e posso, por exemplo, estar em uma comissão de finanças para debater formas de arrecadação”.
310 candidaturas trans
Mariana e Luana não estão sozinhas nessa luta; são 287 candidaturas de mulheres transexuais e travestis e outras 23 de homens transexuais. Destas, seis disputam um cargo no executivo – três para prefeito(a) e três para vice-prefeito(a) – e outras 304 concorrem a um lugar no legislativo.
O número, entretanto, pode ser ainda maior. Ao longo de dois meses a reportagem entrou em contato com o diretório nacional dos 33 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para solicitar o número de candidaturas. Muitos partidos não responderam e outros afirmaram não possuir os dados. Além disso, o TSE também não possuí esse dado específico, apenas o número de candidatos que optaram por utilizar o nome social.
Outra pessoa que colocou “o nome em jogo” para mudar essa realidade é Layza Lima, candidata a vereadora na cidade de Serra/ES pelo PT. “Isso é uma vitória, acima de tudo mostra o avanço da nossa luta. Precisamos reforçar nossa identidade e lutar diariamente contra a transfobia, que é institucional e estrutural”.
Layza, que participa do conselho municipal de saúde do município e é coordenadora da Aliança Nacional Lgbti+ no Espírito Santo, se vê preparada para o desafio. “Vamos ocupar os espaços de discussão política e nos articular pela nossa sobrevivência apesar da transfobia diária. Nós nos politizamos e vamos mudar essa realidade, esses espaços também são nossos e vamos ocupar aquelas cadeiras”, afirma.
Candidaturas à direita
A realidade mostra que a mudança realmente se faz necessária. Mesmo em um contexto de pandemia, esse ano o Brasil registrou um aumento de 47% no assassinato de pessoas trans até outubro em comparação ao mesmo período do ano passado. Os dados são do boletim bimestral divulgado pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).
Esse ‘boom’ de candidaturas está espalhada pelos mais diversos partidos, de todos os espectros políticos – desde os mais à direita como PSL e Patriotas, até os mais a esquerda como PCdoB e Psol. O partido que abriga o maior número de candidaturas de transexuais e travestis é o PT, com um total de 50. Logo em seguida aparecem PSOL (31), PDT (30) e PCdoB (23). PSTU, PCO e NOVO são os únicos partidos que não registraram nenhuma candidatura.
Essas candidaturas em partidos mais à direita, inclusive o PSL, podem parecer contraditórias para um movimento que se diz formado em resposta a Bolsonaro. Mas Luana destaca que a “lógica nacional não cabe para o pleito municipal”. Ela afirma que a maioria dos partidos do país são ideologicamente fracos e que, por vezes podem ser conservadores nacionalmente, mas progressistas no âmbito municipal. Porém, alerta que algumas candidaturas “fortificam um partido que nacionalmente apoia o Bolsonaro”.
Em todo o país
Em relação à localização, o estado que registrou o maior número de candidaturas foi São Paulo, com um total de 71. Na sequência aparecem Minas Gerais (32), Bahia (27) e Rio Grande do Sul (17). O Acre é o único estado sem o registro de nenhuma candidatura trans.
Para Symmy Larrat, presidente da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT), o aumento no número de candidaturas surgiu de uma necessidade de ocupar os espaços políticos.
“Nós percebemos que nós precisamos ocupar os lugares de poder para realmente promover uma representatividade das nossas existências e das nossas opiniões. Além disso, percebemos que mesmo quando as pessoas cisgêneras são nossas parceiras, elas não dão conta de nos representar totalmente”.
Outra questão levantada pelas candidatas que contribuiu para o aumento das candidaturas foi o fim das coligações proporcionais. Dessa forma os partidos se viram obrigados a aumentar as opções para atingir um bom percentual de votos, porque o número de votos é que vai definir o número de vagas.
Além desses fatores, Mariana Franco também citou uma percepção dos próprios partidos que levaram a esse cenário.“É claro que é uma preocupação de ter representatividade contra o governo Bolsonaro. Mas também porque os partidos entenderam que LGBTQ+ vota, tem opinião política, se elege e também se posiciona. Por isso os partido ampliaram a participação no cenário, nós temos um legado na construção política da população LGBTQ+. Na ditadura, é histórica a luta de mulheres trans e travestis na conquista de direitos”, pontua.
Em meio a tantas candidaturas,chama a atenção a disparidade no número de candidaturas de homens e mulheres dentro da comunidade trans. Para Larrat, a diferença é explicada pela história dos dois movimentos.
A presidenta da ABGLT afirmou que a organização política de homens trans é muito mais recente e por isso as mulheres já construíram e possuem uma relação social e partidária mais estruturada. “Seja em organizações nacionais ou mais locais, já é algo mais sólido. Inclusive, é uma questão que devemos nos debruçar depois do período eleitoral para fazer uma análise séria e começar a pensar como é que corrigimos isso, esses fatos que a gente pode e deve melhorar dentro da própria comunidade”.
Pautas que vão muito além da diversidade
Muitas pessoas, erroneamente, tentam limitar candidaturas LGBTQ+ apenas a pautas de diversidade. O “boom” das novas candidaturas, entretanto, mostra que as preocupações vão muito além.
Layza Lima (PT), que é candidata em Serra-ES, tem a saúde como uma das principais bandeiras de sua campanha. Conselheira municipal de saúde, ela defende a valorização do SUS e políticas públicas específicas para pessoas em situação de rua.
“A vulnerabilidade social atinge todas as pessoas, não apenas LGBTQ+. São necessárias políticas públicas para todas as pessoas, dos guetos e favelas até às áreas nobres. Durante a pandemia mais de 30 mil pessoas foram identificadas em situação de vulnerabilidade aqui em Serra e a prefeitura não deu o suporte necessário. Quero me articular para entender os problemas e melhorar questões de segurança pública, violência e falta de empregos. Precisamos de políticas públicas e sociais para construir uma cidade de todas, todos e todes”, diz.
Para Luana, além das pautas de diversidade e acessibilidade, não há como pensar em outras políticas sem uma situação econômica sustentável. “Eu luto pela educação e pela cultura. Sempre foquei nessas área que andam de mãos dadas e vou buscar investimentos em bibliotecas escolares e municipais. Mas, fora isso, temos a pauta econômica, pois se não resolvermos ela não tem como investir. Precisamos ser economicamente sustentáveis para colocar outras políticas em prática. Apesar das bandeiras de educação e cultura eu não ignoro a pauta econômica. Não adianta nenhum candidato prometer nada para a cidade se não tiver condições para realizar isso”, avalia.Já Mariana Franco, promete lutar por pautas inclusivas e que devolvam a renda para as pessoas, Caso eleita, a candidata afirma que seu primeiro projeto apresentado será o de intérprete de libras para pessoas surdas e também ampliar o debate de acessibilidade para pessoas PCD. Além disso, Mariana quer desenvolver o poder aquisitivo da população e capacitá-la profissionalmente.
Dificuldades e violência
É evidente que não são todas as candidaturas que recebem o mesmo tratamento. Mas, é inegável que diversas candidaturas de pessoas transexuais não recebem o devido apoio e estão mais expostas a algumas violências.
Mariana Franco relata que antes do início do período de campanha, chegou a receber ameaças de morte e de estupro.
“Foi uma campanha atípica, feita muito pela internet em virtudade da pandemia. Quando comecei a impulsionar postagens muitos perfis fakes apareceram me fazendo ameaças e debochando das minhas propostas. Também chegaram a fazer um perfil fake meu em um aplicativo de encontro com meu número, minhas fotos e dizendo que eu era atriz pornô e acompanhante, tudo para descredibilizar minha campanha, me intimidar e me desmotivar. Não segui com as denúncias por serem perfis fakes, só registrei o B.O. nas ameaças de morte e estupro. Mas sigo forte e sem medo, tenho esperança de um resultado positivo no domingo (15)”, relata.
Já a candidata do PDT de São Gonçalo, não chegou a receber esse tipo de ameaça, mas se decepcionou bastante com o apoio do partido para sua candidatura. Ciro Gomes, grande nome do PDT, chegou a gravar um vídeo em apoio à campanha de Luana, mas ela reclama que recebeu apenas esse apoio simbólico mesmo e se decepcionou, pois esperava mais. Não houve nenhum repasse financeiro para a candidata, apenas um material de campanha que destacava mais a majoritária de um outro partido da coligação, do que ela própria.
“Eu senti falta de uma liberdade e apoio, minha campanha foi 100% financiada por pessoas físicas. Senti um descaso muito grande e ouvi promessas que não foram cumpridas. Fiz uma campanha muito na raça e o único apoio que recebi foi da militância do PDT Diversidade. Fiquei desapontada porque meu município é o segundo maior colégio eleitoral do Rio de Janeiro e o partido só focou na capital”, desabafou.
Layza Lima, por outro lado, afirma que não tem do que se queixar sobre o apoio do partido. “O PT é um partido de muita luta contra o preconceito. Recebi todo o suporte necessário para material e também recebi verba da nossa setorial nacional. Aproveitei isso e fiz questão de contratar pessoas em situação de vulnerabilidade, desempregadas e LGBTQ+ para trabalharem na minha campanha. Quis desde a campanha levar minha mensagem de ‘Serra da diversidade’ e mostrar que todas podem e devem ocupar todos os espaços”.A candidata do PCdoB de Florianópolis também se mostrou um pouco frustrada com o apoio do partido, principalmente na questão financeira. Mas salienta, que ao menos, a verba para todas as mulheres do partido foi igualitária, exceto para mulheres negras que receberam um pouco mais.
Ela também ressaltou que uma grande dificuldade da campanha foi que ela aconteceu em meio a uma pandemia, sem a possibilidade de ir às ruas e correr o risco de provocar aglomerações.
“Foi difícil porque a internet não permite que eu aborde as pessoas e explique as propostas. Muitas pessoas sequer tem acesso a internet para assistir um vídeo da campanha. Por isso, tentei fazer uma campanha digital simples e de mais fácil acesso possível, sempre com legendas e facilitando a comunicação. Mas senti falta de ir para a rua e poder conversar com as pessoas”, contou.
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