A natureza, repetida e violentamente agredida, mostrou a sua implacável força no Rio Grande do Sul. Em poucos dias, o Guaíba e os rios que formam que o Delta do Jacuí transbordaram em enchente de proporção histórica, destruindo cidades, arrastando pontes, devorando casas, arrasando plantações, devastando vidas e, sobretudo, aniquilando as esperanças colhidas ao longo do tempo. E não há sinais claros de que as águas retornarão ao seu nível normal e seguro para a população ribeirinha. Apenas a natureza dirá ao tempo quando e qual a razão para cooperar com quem a destrói, constante e impiedosamente.
Ainda que se possa afirmar que fora uma tragédia anunciada por inúmeros cientistas, ambientalistas e urbanistas, nada pode consolar ou justificar a morte de mais de 100 pessoas e outras mais desaparecidas. Não há discurso ou tese que possa explicar para as famílias que perderam seus entes queridos a não adoção de políticas públicas e ambientais que evitariam que morressem. Tampouco serve culpar o Guaíba por “ser forte, aguerrido e bravo” em seu gesto descomunal, especialmente quando se sabe do abandono das obras de prevenção de enchentes, da especulação imobiliária devastadoras da sua bela margem e do descaso para com as políticas públicas ambientais que poderiam evitar a catástrofe.
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É bem verdade que os prejuízos materiais são incalculáveis, assim como as perdas emocionais, o apagamento de lembranças afetivas ou as restaurações dos retratos colecionados nos álbuns das experiências personalíssimas. Mas é igualmente verdadeiro que parte das estruturas destruídas serão recuperadas com os investimentos públicos já prometidos, especialmente os que sobreviveram à secular corrente de corrupção, interesses privados e incompetência que navegaram pelos cofres públicos até então. Daí a razão da importância de se disparar, de logo, um alerta preventivo contra novas calamidades públicas, tsunamis sociais ou criminosas especulações desenfreadas das margens dos rios.
Salvo no inquestionável mundo da espiritualidade, compreende-se que não se altera o curso da vida naufragada na enxurrada do tempo. Não há um retorno previsível ou palpável para as pessoas que fisicamente se foram ou para as coisas desaparecidas na fungibilidade da matéria. As tragédias, entretanto, servem de aprendizado vivo para que não sejam repetidas em dores falecidas. E, dentre os saberes que servem de “farol da divindade”, a certeza de que o aquecimento global, a poluição desenfreada, o uso de combustível fóssil, a privatização da natureza e a crise climática não são discursos vazios e transloucados de cientistas, ambientalistas e humanistas.
“Nesta ímpia e injusta guerra”, devemos ainda aprender que a politicagem, o uso deliberado de mentiras eleitoreiras ou a odienta ambição pelo poder somente ampliam a tragédia social e o caos humanitário que assolam o planeta. Infelizmente, esse grupelho não aprendeu com as “façanhas” libertárias de Anita Garibaldi, pois ousou tentar aprisionar a solidariedade que já se espalha “a toda Terra”. Gesto de crueldade que se equipara aos bandidos que se aproveitaram da tragédia para rapinar as casas e roubar o pouco dos bens que sobreviveram em cada moradia resistente.
Felizmente, “a virtude do povo gaúcho não se deixou escravizar”. Não poderia ser diferente nos rincões em que Bento, Brizola, Elis, Getúlio, Faoro, Jango, Lya, Prestes, Quintana, Scherer, Veríssimo e incontáveis pessoas tornaram-se “precursores da liberdade”. No Rio Grande do Sul a esperança não desmontou acomodada e fez da solidariedade a sua nova peleia. “Mostrando valor, constância”, enfrentou o tempo, vestiu-se em empatia, resistiu ao medo, desafiou a morte, acreditou na vida, venceu a mentira, apostou no amor e se fez “de modelo a toda terra”.
E como a solidariedade é um rio que nunca seca, “como aurora precursora” ela se esparramou Brasil afora. A rede de apoio, voluntariedade, generosidade, empatia e irmandade jamais vista no Brasil demonstrou que “ninguém solta a mão de ninguém”. Norte, Sul, Centro-Oeste, Sudeste e Nordeste unidos como um só povo, simplesmente porque um só povo é. Vale, então, lembrar da experiente alma nordestina que, mesmo diante da secular seca que a “faz chorar de dor”, guarda no coração o esperançar da volta para seu judiado sertão. E na bela narrativa de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira ainda nos ensina: “Eu te asseguro, não chore não viu? Que eu voltarei, viu, meu coração?”.
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