Romi Bencke *
“O símbolo muitas vezes engole o escândalo histórico que lhe deu origem e mitiga a experiência apavorante com que as primeiras gerações de cristãos tiveram que lidar”[1].
A frase acima do teólogo Vítor Westhelle, nos lembra que as raízes da fé cristã estão ancoradas em um escândalo histórico que foi a crucificação de Jesus, de Dimas e de Gestas, estes últimos, acusados de criminosos. A decisão pelas condenações resultou de estratégias da incidência sacerdotal junto aos representantes do Império Romano em Jerusalém. A relação entre religião e poder é a responsável pela cruz que matou Jesus, Dimas e Gestas, estes dois passaram para a história como ladrões e a morte de ambos nunca foi incômoda para pessoas cristãs. Não sabemos da história de Dimas e Gestas e, muito menos, se os supostos crimes praticados por eles justificavam uma condenação tão cruel.
A história da cruz pode ser chave de leitura para a guerra atual que acontece na Faixa de Gaza e envolve, por um lado, o Estado de Israel e, por outro, o Grupo Hamas. Foi nesse território, lugar de muitos povos, que o escândalo da cruz aconteceu. Por séculos essa pequena região, sagrada para as tradições de fé monoteístas – judaica, cristã e muçulmana – tem sido alvo de disputa de potências colonialistas que mobilizaram e mobilizam o fator religioso para justificar e legitimar atrocidades.
A guerra em curso é a continuidade dessas disputas históricas. Poderíamos recuperar as cruzadas em que, tanto judeus quanto muçulmanos, foram vítimas e, mais tarde, todas as disputas relacionadas a interesses e ambições econômicas na região. As potências ocidentais foram eficientes em transferir as imagens da violência, da intolerância, de anti-democráticos e da tirania para os habitantes do Oriente Médio, quando quem promove a violência na região em nome de uma suposta democracia e dos direitos humanos são as potências ocidentais.
Afinal, quem são as pessoas que vivem em Israel e na Palestina?
PublicidadeOs cidadãos e as cidadãs israelenses do século 21 são pessoas que podem, ou não, ser praticantes do judaísmo, embora, a grande maioria tenha sua ancestralidade ligada à tradição judaica. O Estado de Israel foi criado, no pós-Segunda Guerra para ser um lugar seguro para o povo judeu que historicamente sofreu perseguições na Europa. O povo judeu talvez tenha sido a primeira vítima de fake news da história, pois autoridades de igrejas e políticas diziam que judeus tinham que responder pela crucificação de Jesus.
A criação do Estado de Israel foi decidida pelas potências colonialistas ocidentais. A voz do povo palestino não foi considerada, mesmo que essa decisão tenha implicado a concessão de parte do território palestino para o que seria o Estado de Israel.
E os palestinos, quem são? Podem ser judeus que sempre viveram na região, podem ser cristãos e cristãs e podem ser muçulmanos e muçulmanas. Palestinos também podem ser sem religião ou professar outras religiões minoritárias. A maioria dos judeus e palestinos é de trabalhadores e trabalhadoras que travam a luta diária pela sobrevivência, com o agravante de que palestinos para ir trabalhar precisam, diariamente, passar por uma revista feita por soldados israelenses.
A quem interessa, então, a imagem maniqueísta de que a região vive a guerra do bem contra o mal? Por que palestinos, muçulmanos, ou não, são associados a terroristas? Por que a Faixa de Gaza somente aparece nas mídias internacionais quando existe conflito? Por que não conhecemos a rica história e importância cultural desta região que liga as três religiões do Livro?
Há uma pergunta que antecede todas essas, que é pela função da imagem bíblica do Deus da Guerra ou Deus dos Exércitos. Essa imagem sacraliza a subjugação de um povo sobre o outro e sacraliza a limpeza étnica. Além disso, a imagem do Deus da Guerra sacraliza a indústria bélica, degrada uns e exalta outros para justificar extermínios. A figura bíblica do Deus da Guerra é a anti-imagem do sagrado, porque é contrário à vida, porque autoriza bombardeios, censura e interdita qualquer tentativa de paz. A imagem do Deus da Guerra ancora toda e qualquer política teocrática e autocrática. O Deus da Guerra é avesso da justiça.
A guerra Israel-Palestina é assunto e também razão de fake news no Brasil. O identitarismo de uma parte de evangélicos tem se aproveitado da guerra para divulgar o absurdo do “sinonismo cristão”[2], que é, em rápidas palavras, a leitura das profecias bíblicas a partir de uma perspectiva de restauração do mundo por Deus. Para essa restauração tornar-se realidade, Israel precisa se apossar de toda a Terra Prometida, isto é, de toda a Palestina. Para esses evangélicos, a formação do Estado de Israel, em 1948, é o marco inaugural do cumprimento dessa profecia. O Estado de Israel automaticamente é compreendido por esses grupos evangélicos como o Israel da Bíblia, portanto, toda e qualquer política expansionista do Estado de Israel é o cumprimento da restauração do mundo por Deus. Ora, se um povo deve ser exterminado para que Deus restaure um mundo decadente, não seria, então, o extermínio a decadência de Deus?
O sionismo cristão é incapaz de criticar a barbárie. Ao contrário, ele sacraliza a barbárie. A ideia de restauração do mundo em detrimento do extermínio de povos nada mais é do que a autorização e a normalização da prática de genocídio. Degrada-se a dignidade do outro a tal ponto que sua morte torna-se insignificante. Talvez, por isso, a morte de 1.500 crianças e 1.400 mulheres palestinas não comovam parte das pessoas que acompanham as notícias sobre o conflito na região. A falta de lugar para o sepultamento dessas crianças e mulheres obriga que elas sejam sepultadas em valas comuns, sem ritos fúnebres, sem nome, sem história, sem individualidade.
Ao se aproveitar do sofrimento humano para proclamar o sionismo cristão, esses arautos da barbárie tornam irrelevante o escândalo histórico que deu origem à fé cristã. Ao vincular o extermínio de um povo à restauração do mundo por Deus, sionistas cristãos anulam o escândalo da cruz e banalizam a perversidade.
Essa guerra responsabiliza as tradições de fé abraâmicas, pois o Deus anunciado por elas não é o Senhor dos Exércitos, mas o Deus do amor e da reconciliação. Não adianta simplesmente dizer que o conflito na região não é religioso se as teologias do ódio ganham cada vez mais espaço em boa parte das igrejas.
[1] WESTHELLE, Vítor. O Deus escandaloso – O uso e o abuso da cruz. São Leopoldo: Ed. Sinodal; Faculdades EST, 2008, p. 17.
[2] Para saber mais, leia o teto de Magali Cunha: O que é o sionismo cristão e por que ele alimenta a direita no Brasil… https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/o-que-e-o-sionismo-cristao-e-por-que-ele-alimenta-a-direita-no-brasil
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site
* Romi Bencke é pastora da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, graduada em Teologia pelas Faculdades EST (São Leopoldo), mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião da UFJF. Em 2013 recebeu o prêmio de Direitos Humanos na categoria Promoção e Respeito à Diversidade Religiosa. Atualmente ocupa a função de secretária geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (Conic) e integra o grupo coordenador do Fórum Ecumênico ACT Brasil.
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