Iara Lemos, de Lisboa *
Presidente da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, o médico psiquiatra Pedro Strecht é uma das pessoas do mundo que conhecem mais profundamente a dor das vítimas de violência sexual cometidas por religiosos católicos. No último ano, foi sob o comando de Strecht que o colegiado inédito em Portugal recolheu depoimentos de vítimas, a maior parte na faixa dos 40 e 50 anos, que relataram violências a que foram submetidas ainda quando crianças.
Foi em seu consultório, no centro de Lisboa, que o médico conversou com o Congresso em Foco. Nesta entrevista exclusiva – e inédita a um veículo brasileiro -, o psiquiatra falou sobre os impactos do relatório na sociedade portuguesa e, principalmente, da expectativa de que o trabalho possa nortear ações semelhantes em outros países, como é o caso do Brasil. A seguir, os principais trechos da entrevista.
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Congresso em Foco – O trabalho da comissão durou um ano, mas esteve longe de abraçar todas as vítimas de pedofilia cometida por religiosos da Igreja Católica em Portugal. Como vocês conseguem ter uma amostra significativa das violências cometidas com esses dados?
Pedro Strecht – Foi um tempo que, no final, nós mesmos sentimos como demasiado curto. Começamos mesmo no dia 10 de janeiro de 2022, mas todos os preparativos iniciaram em novembro e dezembro do ano anterior, por meio de um convite da conferência Episcopal portuguesa. Queríamos centrar nas pessoas, para que sentissem que estavam protegidas pelo anonimato. Abrimos uma linha telefônica que esteve sempre a funcionar, das 10h às 20h todos os dias. Abrimos um e-mail e um site com todos os nossos contatos e com um questionário online, em que as pessoas podiam preencher para descrever sua situação. Nestes contatos telefônicos que também foram intensos, disponibilizamos sempre a possibilidade de as pessoas virem aqui e fazerem as entrevistas presenciais, sempre com dois elementos da equipe, onde poderiam contar diretamente sua narrativa. Cerca de um mês depois de termos começado, percebemos que poderia ser difícil chegar às zonas mais interiores e pobres do país. Então, abrimos outras formas de comunicação através do correio normal, onde as pessoas também podiam enviar seus relatos e documentos e aquilo que consideravam importante. A imprensa também teve um papel muito importante em divulgar os nossos contatos. Claro que foi um trabalho muito duro, sobretudo no final. Claro que percebemos que a amostra não é significativa porque tivemos um predomínio de pessoas mais do litoral, mais escolarizadas, com nível econômico mais intenso, em detrimento de outros do interior, que é a população mais pobre.
Assista a um trecho em vídeo da entrevista e continue a leitura abaixo:
PublicidadeSão nestas populações mais pobres que ocorrem mais casos em Portugal?
Talvez, mas elas não conseguiram chegar. Sentimos também no relatório uma diferença significativa sobre os locais onde as pessoas vivem. Há uma grande localização para o litoral das grandes cidades. Encontramos nas últimas décadas, sobretudo nos anos 50, 60 e 70, verdadeiros pontos intensos dentro do país, como seminários que existiam nestas regiões, como Braga e Santarém. De qualquer forma, e isso foi uma das questões que colocamos nas considerações finais, é necessário que haja um estudo mais amplo, assim como a comissão francesa, que durou dois anos e teve uma verba imensa, com uma mostra mais significativa de toda a população, mas também sobre os abusos ocorridos em geral, não só os que ocorrem dentro da Igreja. Por isso que sentimos que esse estudo e esse relatório final não é um final. É um começo para outros estudos, outros dados e outras pistas que o próprio relatório aponta.
Qual foi a sensação do Pedro, como pessoa, ao ouvir esses relatos de outras pessoas que, em busca de acolhimento religiosos, acabaram sendo violentadas?
Mesmo com meu trabalho, também foi particularmente difícil trabalhar com essas pessoas. Como médico especializado em psiquiatria para crianças e adolescentes, estou acostumado a ouvi-los, e aí, a situação de abusos pelos quais elas passaram, ou estão a passar, foi há pouco tempo. Mesmo como médico, foi muito difícil ouvir adultos vítimas de abuso quando eram crianças. Por vezes, sentíamos que aquele adulto que estava ali na nossa frente era, na verdade, aquela criança que estava a descrever. E, sobretudo, sentíamos que aquilo que ocorreu há dez, 20 anos, nos impedia de agir no aqui e agora. Só podíamos ampará-los no sofrimento do momento e ajudar aquela pessoa a prosseguir para além dele. A outra questão é que, claro que a maioria das pessoas que respondeu a nosso estudo se colocava como católicas e praticantes e, portanto, mesmo em crianças, com seus pais e família, partiam de uma situação de confiança redobrada face àqueles adultos que representavam ou representam a figura de Deus. São todas as questões que a Igreja Católica considera como inequívocas e que eram colocadas à prova. A noção de medo, de vergonha e de culpa era remitida à própria criança. Isso tudo gerou um forte silenciamento que favorecia não só a punição como também a continuidade. Na nossa amostra, e não só na nossa amostra, a maior parte dos abusos foi múltiplo e forma mantidos por muitos anos.
Mantidos com o apoio do Estado? E de que forma o Estado tem responsabilidade sobre essas vítimas?
Tem sim responsabilidade, e vimos isso no nosso estudo, que decidimos delimitar de 1950 a 2022. Em Portugal, até 1985, não havia crime de abuso sexual. Só em 1990 Portugal ratifica a Carta dos Direitos da Criança da ONU e aí muda de fato a legislação. E muda consideravelmente em 2007, quando os crimes de abuso sexual de crianças passam a serem crimes públicos, permitindo que uma pessoa que tenha conhecimento pode denunciar. Essa, sem dúvida, foi uma grande mudança.
Mesmo com essa alteração na lei, sabe-se que o religioso acaba tendo uma proteção da Igreja. Como muda-se isso? Com a incidência moral sobre as pessoas. Por isso insistimos que, mesmo que em grande parte dos casos não haja prova jurídica no tribunal, a Igreja deve recorrer ao livro do Direito Canônico. Pelo Direito Canônico a igreja pode suspender, inibir aquele padre de estar com crianças, de atuar em determinadas funções. A Igreja precisa ter coragem para perceber que, se não o fizer, quanto mais fugir e esconder esse tema, mais violência irá existir e mais será uma fonte futura de descredibilização da Igreja. A maior parte das pessoas que fazem parte do nosso relatório deixou de ter práticas religiosas e mais, fizeram o que chamamos de transferência transgeracional, em que não batizam os filhos, não deixam eles irem para a catequese.
O Pedro é católico? Acredita na Igreja Católica?
Essa é das coisas que mais me perguntam. Eu cresci numa escola católica, mas fiz o restante da minha formação em escola pública. Como costumo dizer, eu sinto a Igreja Católica de uma maneira muito especial. Vejo a mensagem católica nas pessoas, sobretudo nas que sinto que são as mais frágeis, as mais esquecidas, as mais doentes. É nelas que vejo, entre aspas, o meu “Deus”. Isso para justificar que não sou uma pessoa que vá à missa, que pratique atos religiosos.
No período dos trabalhos da comissão, vocês receberam relatos de pessoas de diversos países, inclusive das Américas. Alguma denúncia vinda do Brasil?
Não. Tivemos dos Estados Unidos, do México, do Canadá. Depois tivemos do continente africano, dos países baixos.
No meu livro, a Cruz Haitiana, eu falo de um padre de origem portuguesa, que cumpre pena no Canadá, por crimes de pedofilia cometidos no Haiti. Vocês tinham conhecimento deste padre e deste uso por parte da Igreja Católica do território haitiano?
Não. Mas ficou claro para nós que, em Portugal, pessoas que cometerem esses tipos de crime eram ajudadas pelo sistema católico português a abandonar Portugal.
O Papa Francisco tem feito um movimento que já resultou em mudanças no Código Canônico, mas sabemos que esses avanços ainda são poucos perto do que deve ser feito. A Igreja Católica ainda considera como punição um afastamento das atividades religiosas, mas uma punição como se espera da justiça em caso de violação sexual não ocorre.
Isso foi das coisas que colocamos no relatório final. É dever moral da igreja colaborar com as autoridades judiciais e não esconder se tiver conhecimento de casos. Durante anos a prática comum da igreja era ocultar a situação e nos casos mais intensos era simplesmente mudar de paróquia, nem sequer afastavam.
Isso continua acontecendo aqui?
Esperamos que menos, mas durante anos foi a prática comum da Igreja.
Essa engrenagem de proteção da igreja católica ajudou na violação sexual de crianças e adolescentes em todo o mundo?
Sim, sem dúvida. Por isso não surpreende que tenha havido espécie de paraísos, tal como os paraísos econômicos, como o Haiti, onde essas pessoas iam viver sem nenhuma punição.
De que forma partidos políticos com características conservadores, como é o Caso do CHEGA em Portugal, e do PL no Brasil, podem prejudicar ações de combate às violações, já que, por exemplo, são contrários à educação sexual nas escolas?
Eles (partidos) não permitem que haja uma verdadeira igualdade entre homens e mulheres, ou são contra a homossexualidade. Todos esses fatores de repressão vão no fundo prejudicar e colocar o problema embaixo do tapete. Uma das nossas situações mais públicas, e talvez mais escandalosas, foi o de um padre confessor aqui de Lisboa, que era o orientador do líder do CHEGA. Ele foi suspenso das funções pela Igreja Católica. Parece uma contradição.
O senhor fala do deputado André Ventura. O padre confessor dele é um pedófilo?
Sim, e foi suspenso e por enquanto não sabemos onde ele está. Esses muito extremistas fazem uma narrativa destorcida do que interessa à sociedade e por vezes as pessoas confundem sexualidade com pornografia. Uma sexualidade bem vivida e bem resolvida é não só algo natural quanto saudável dentro do desenvolvimento de cada um.
Você sentiu medo em algum momento?
Não, mas todos sentimos tensão, mas também sentimos muitas manifestações de apreço pelo nosso trabalho.
* Iara Lemos, editora do Congresso em Foco, é autora do livro A Cruz Haitiana, que mostra como a Igreja Católica usou de seu poder para esconder religiosos pedófilos no Haiti. O livro, em segunda edição, já foi lançado no Brasil e em Portugal e, ainda este ano, chega à França, traduzido ao francês pela Editora Infinita, de Portugal. O trabalho foi fruto de mais de dez anos de pesquisa, com depoimentos da vítimas e acessos aos documentos do Vaticano, da Justiça do Canadá, Estados Unidos, Haiti e República Dominicana. Na última semana, Iara fez a palestra de abertura da 93ª Feira do Livro de Lisboa, onde entregou em mãos o livro ao presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa.
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