Não há dúvidas de que, desde o fim da Segunda Guerra Mundial, o debate sobre direitos humanos consolidou-se como um dos temas principais das relações internacionais. Ainda que os desafios impostos pelo aquecimento global sejam mais facilmente percebidos como preocupações com repercussões transnacionais, violações sistemáticas de direitos humanos também passaram a ser encaradas como tema de preocupação internacional. A partir da leitura das obras de José Augusto Lindgren Alves (Os Direitos Humanos como Tema Global) e Benoni Belli (A Politização dos Direitos Humanos), o texto busca pontuar argumentações, controvérsias e conceitos que, de alguma forma, norteiam o posicionamento de países sobre violações dos direitos humanos. Não se trata de resenhas, mas de um singelo esforço no sentido de instigar o interesse do público não especializado por essa temática, pois, como salientou Guimarães Rosa em Grande Sertão Veredas: “Vivendo se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas.”.
Retomada histórica e pontos importantes
Os direitos humanos trilharam um árduo caminho para serem percebidos como universais a partir das discussões relativas à redação da carta da ONU em 1945. Benoni Belli (2009) lembra que em meio a debates tidos como mais importantes pelas potências que dividiam o mundo entre bloco socialista e bloco capitalista, a ideia de direitos humanos universais foi aceita, naquele momento, mediante a consagração, no mesmo documento, da igualdade soberana dos Estados e a não interferência em assuntos domésticos como garantias suficientes de que os Estados não estariam sujeitos a nenhum tipo de dispositivo de direitos humanos que limitasse a capacidade de decisão dos Estados em âmbito doméstico.
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No campo da Carta da ONU, os artigos 55 e 56 passaram a ser os mais lembrados para legitimar a universalidade desses direitos bem como o compromisso dos Estados com sua defesa e promoção. Enquanto o artigo 55 enfatiza os aspectos econômicos, sociais, culturais dos direitos humanos, e promove o respeito universal e efetivo dos direitos humanos; o artigo 56 cobra o comprometimento dos Estados para agir em cooperação com a ONU, de forma conjunta ou separadamente para realizar os propósitos elencados no artigo 55. Ainda que a crítica de que a Carta da ONU tenha abordado o tema dos direitos humanos de forma muito genérica e vaga seja verdadeira, o fato é que seu artigo 68 delegou ao Conselho Econômico e Social (ECOSOC) a tarefa de criar a comissão para proteção dos direitos humanos.
Criada, então, em 1947, a Comissão de Direitos Humanos conseguiu apresentar em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) que estabeleceu, pela primeira vez, normas comuns de proteção aos direitos da pessoa humana, a serem seguidas por todas as nações. A DUDH apresentou a base do atual sistema de tratados vinculantes sobre direitos humanos e consolidou-se como parâmetro para avaliar o comprometimento dos países com a promoção e defesa dos direitos humanos. As negociações para a criação de documentos vinculantes de direitos humanos arrastaram-se por toda a década de 1950 e primeira metade da década de 1960. Ao final desse período, em 1966, a Assembleia Geral do ONU aprovou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (os dois pactos entraram em vigor em 1976 quando obtiveram o número mínimo de ratificações).
O estabelecimento desses dois pactos foi resultado de disputas ideológicas entre visões distintas sobre a natureza dos direitos humanos. Se por um lado os países ocidentais atribuíam maior importância aos direitos civis e políticos individuais, os países do bloco socialista entendiam que um conjunto de direitos coletivos (econômicos, sociais e culturais) era pré-requisito imprescindível para se garantir plenos direitos civis e políticos aos cidadãos. A Comissão de Direitos Humanos consagrou os dois pactos dando igual peso jurídico aos direitos humanos neles elencados estabelecendo, inclusive, no âmbito da ECOSOC, dois comitês exclusivos para tratar de assuntos pertinentes a cada um dos respectivos pactos. Contudo, ao estabelecer um “Comitê de Direitos Humanos” para tratar do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e um “Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” para o Pacto de Direitos Econômicos Sociais e Culturais é possível perceber a subliminar hierarquização discriminatória em favor dos “direitos de primeira geração” (direitos civis e políticos).
Foi, então, que, em 1993, a Convenção de Viena sobre Direitos Humanos conseguiu, por meio do consenso, a aceitação da universalidade dos Direitos Humanos. A Convenção de Viena contou com a participação de delegações oficiais de 171 Estados, reforçando assim seu caráter universal. Faz-se necessário reforçar que em 1993, o Brasil ficou responsável pelo comitê de redação que teve o objetivo apresentar o texto final da convenção e submetê-lo à apreciação das delegações presentes.
Viena consolidou o entendimento internacional de que os Direitos Humanos devem ser abordados a partir de sua característica universal, interdependente e indivisível entre democracia desenvolvimento e direitos humanos. Esse entendimento é fruto de décadas de debates entre os países “ocidentais” que enfatizavam características individualistas dos direitos humanos (direitos de primeira geração – liberdades fundamentais), os “socialistas” que defendiam os direitos econômicos, sociais e culturais (direitos de segunda geração – alimentação, moradia, educação, etc.) e os países do chamado Terceiro Mundo que reivindicavam solidariedade internacional em um contexto de descolonização nos continentes africano e asiático (direitos de terceira geração – desenvolvimento econômico, paz, defesa do meio-ambiente, etc.).
Críticas generalizadas ao trabalho da Comissão de Direitos Humanos referentes a sua instrumentalização política por parte dos países desenvolvidos e em desenvolvimento ao longo dos anos (seletividade, padrões duplos, composição de seu conselho, etc.) levaram a sua substituição, em 2006, pelo Conselho de Direitos Humanos, vinculado diretamente à Assembleia Geral da ONU. As violações de direitos humanos são monitoradas no âmbito dos seguintes comitês: 1) Eliminação da Discriminação racial; 2) Direitos Econômicos, sociais e culturais; 3) Direitos humanos; 4) Eliminação da Discriminação contra Mulheres; 5) Contra tortura; 6) Direitos da Criança, 7) Trabalhadores imigrantes; 8) Combate à Tortura; 9) Pessoas com Deficiência; 10) Desaparecidos.
Disputas e controvérsias
José Augusto Lindgren Alves (1994) lembra que os países ocidentais percebem os direitos civis e políticos (direitos de primeira geração) como mais importantes por entender que “são mais facilmente realizáveis do que os demais por exigirem do Estado apenas prestações negativas: bastaria aos governos não censurar, não reprimir, não torturar e não discriminar para que os direitos civis e políticos fossem observados.” Esse entendimento encontrou forte oposição entre os países socialistas levando, como foi visto, a uma discussão sobre a Declaração de Direitos Humanos de 1948 que resultou em dois pactos distintos.
Ainda hoje, as divergências de posicionamento sobre violações de direitos humanos no interior dos Estados membros da ONU encontram todo tipo de respaldo teórico no artigo 5º da Convenção de Viena que assinala: “Todos os direitos humanos são indivisíveis, interdependentes e inter-relacionados. A comunidade internacional deve tratar os direitos humanos globalmente de maneira justa e equitativa, em pé de igualdade e com a mesma ênfase”. Contudo, ainda que a aceitação da universalidade dos direitos humanos pelos países seja, hoje, um ponto pacífico, a abordagem da situação dos direitos humanos nos Estados encontra desafios complexos que esbarram em visões distintas sobre os diversos contextos políticos, econômicos e sociais domésticos em quem se dão as violações de direitos humanos e que se tornam ainda mais intrincados ao se considerar as conjunturas geopolíticas em que o Estado está inserido. Essas são conjunturas que o próprio artigo 5º da Convenção de Viena leva em consideração, mas que não eximem os governos da responsabilidade de promover e defender os direitos humanos.
Ao aderir a uma convenção ou declaração de direitos humanos, o Estado abdica de uma parcela de sua soberania (conceito vestfaliano), obrigando-se a reconhecer o direito da comunidade internacional de observar e opinar sobre a situação doméstica pertinente à promoção e defesa dos diretos humanos. Nesse sentido, o Conselho de Direitos Humanos da ONU, por meio de diversos mecanismos de controle tem sido a principal interface para monitorar e promover os direitos humanos de forma universal. Adicionalmente, existe um entendimento generalizado de que a legitimidade internacional de um governo não se dá somente pelo processo político que o alçou ao posto mais alto do poder executivo de determinado país. A defesa e a promoção dos direitos humanos em sua plenitude devem se submetidos, de boa fé, ao escrutínio da comunidade internacional como forma de legitimação internacional.
Sem a pretensão de esgotar as controvérsias e contradições a respeito do monitoramento legítimo de violações de direitos humanos pela comunidade internacional, bem como sua instrumentalização para a concretização de objetivos políticos pelos países é preciso enfatizar que tudo isso se dá em um cenário de inexistência de autoridade supranacional. Nesse sentido, José Augusto Lindgren Alves explica esse contexto da seguinte forma: “o que existe, essencialmente, é um conjunto de Estados que interagem, dentro ou fora do direito, sem o substrato de uma verdadeira sociedade mundial. As nações já não convivem no “estado de natureza”, mas seu “contrato social”, é incoativo e imperfeito, pois não transferiram – e nem o devem fazer nas condições vigentes – a um “poder supranacional soberano” os meios efetivos para protegê-las da vontade recíproca, ou para tutelar os direitos dos cidadãos do mundo”.
A posição do Brasil
A legitimidade da preocupação internacional em relação às violações de direitos humanos em qualquer lugar do mundo já é ponto pacífico. Ainda que a forma de monitoramento e o teor dos relatórios sejam comumente criticados pelos países alvos de relatórios, atualmente a preocupação internacional não tem sido alvo de objeções. A legitimidade da preocupação internacional consolidou-se mesmo diante da instrumentalização do direito à autodeterminação dos povos, consagrado no artigo 2º da Convenção de Viena (1993): “Todos os povos têm o direito à autodeterminação. Em virtude desse direito, determinam livremente sua situação política e procuram livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural”.
Da mesma forma, é importante destacar que os mecanismos de controle e monitoramento dos direitos humanos no âmbito das Nações Unidas estão no nível da observação e das recomendações. A soberania dos estados alvos permanece, nesse contexto, resguardada cabendo aos governos posicionarem-se frente às indagações, recomendações e visitas de relatores.
Desse modo, ao tomar posição sobre resoluções da CDH sobre países, as nações se veem diante de possibilidades reais de assumir custos em relação aos países patrocinadores de tais resoluções e dos países que são objetos dessas resoluções. Benoni Belli (2009) destaca que desde os anos 1990, a atuação do Brasil no Sistema de Direitos Humanos da ONU tem sido norteada pelos seguintes princípios: transparência e cooperação; legitimidade de preocupação internacional com os Direitos Humanos em qualquer lugar; universalidade dos direitos humanos; e interdependência e reforço mútuo da democracia, dos direitos humanos e do desenvolvimento. Assim, a partir dos princípios acima elencados, o Brasil busca se posicionar levando em consideração o nível de politização de cada resolução, os efeitos práticos da resolução no país alvo e, do mesmo modo que os demais países, as consequências de seu voto sobre os interesses do país sobre sua intrincada rede de agendas e interesses nacionais.
É possível cogitar, então, que a atuação do Brasil busca encontrar respaldo no seu comprometimento doméstico com políticas de defesa e promoção dos direitos humanos, no apoio integral ao sistema de direitos humanos da ONU e no pragmatismo de sua abordagem tridimensional, inter-relacionada e indivisível entre democracia, desenvolvimento e direitos humanos. Adicionalmente, a abordagem brasileira parece pautar-se pelo entendimento de que condições adversas para o desenvolvimento de um país não eximem o Estado de promover a defesa dos direitos civis e políticos. No entanto, reconhece-se que condições adequadas para o desenvolvimento permitiriam a fruição efetiva de todos os diretos (de primeira, segunda e terceira gerações). Nesse contexto, é possível entender, a aversão brasileira a posicionamentos (resoluções) que impliquem sanções que deteriorem as condições econômicas do país alvo e isolem ainda mais esse país da comunidade internacional. Como é sabido, a farta bibliografia sobre sanções econômicas sustenta a ideia de ineficácia desse tipo de medida no sentido de mudar o comportamento dos governantes, além de causar mais sofrimento à população do país alvo de sanções.
Belli, Benoni. A Politzação dos Direitos Humanos. São Paulo: Perspectiva, 2009.
Alves, José Augusto Lindgren. Os Direitos Humanos como Tema Global. São Paulo: Perspectiva. 1994.
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