Helena Wajnman * e Ana Luiza Pessanha **
Estabelecer o concurso público como principal forma de ingresso na administração pública foi um avanço inegável da profissionalização da burocracia brasileira. Com um processo orientado pela impessoalidade na avaliação de candidatos e candidatas, o país pôde ver florescer um corpo burocrático sólido e qualificado. Isso é notável em rankings realizados por organizações internacionais como a OCDE e o Banco Mundial, nos quais a administração pública federal brasileira aparece sempre bem avaliada no quesito recrutamento por mérito, em relação a outros países da América Latina.
Contudo, não podemos deixar de olhar para o fato de que a forma como os concursos públicos são feitos no Brasil se tornou obsoleta com o tempo, nos apartando das boas práticas preconizadas pela literatura acadêmica e praticadas por alguns países desenvolvidos. A priorização da memorização de conteúdos formais e legalistas, muitas vezes distantes da realidade do trabalho a ser executado na ponta, constitui um dos principais gargalos do recrutamento de servidores públicos no país.
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É preciso modernizar a nossa visão de mérito para incluir a avaliação de competências, que podem ter sido adquiridas tanto pela diversidade socioeconômica e cultural da nossa população como também pela experiência profissional pregressa de candidatos e candidatas. Igualmente importante é a seleção de profissionais com vocação para exercer a função pública de trabalhar árdua e criativamente pela qualidade dos serviços públicos e pela redução de desigualdades do país.
A ausência de uma lei nacional que traga segurança jurídica em relação aos concursos públicos figura como um dos maiores desafios sobre o tema. Estados e municípios brasileiros – entes que mais executam concursos públicos – frequentemente enfrentam casos de judicialização, o que onera bastante todo o processo.
O Projeto de Lei 2.258/2022, também conhecido como a Lei Geral dos Concursos, surge como um avanço nesta temática. De caráter apenas autorizativo, o PL propõe três importantes inovações. Primeiro, ele permite que governos municipais, estaduais e federais incluam outras etapas de avaliação como método de seleção, para além da prova objetiva tradicional. Isso significa, por exemplo, que uma secretaria municipal de educação poderá realizar provas práticas, com menor risco de judicialização, para avaliar se o aspirante a professor tem competências didáticas para dar aulas. Parece uma questão muito básica, mas ainda não é implementada em larga escala no país.
Uma segunda modernização trazida pelo PL é a possibilidade de realização de concursos públicos à distância, quando o uso de tecnologia for viável e seguro, o que pode reduzir custos de implementação e garantir uma participação mais diversa e regionalizada da população no total de inscritos. Por fim, o projeto também estabelece diretrizes mínimas para justificar a abertura de concursos públicos, trazendo maior racionalidade para a gestão de recursos humanos.
O projeto em tramitação no Senado é condição necessária para uma maior profissionalização da burocracia e, por isso, precisa ser aprovado. Porém, ele não constitui condição suficiente para colocar o país em uma nova trajetória. Há muitos outros desafios de regulamentação nos estados e municípios, e os gestores públicos precisarão de formação para conduzir esses processos seletivos de forma a garantir que os princípios constitucionais de isonomia, impessoalidade, moralidade e eficiência sejam respeitados.
É esperado que inovações dessa magnitude gerem receios de retrocesso, principalmente em um país que já tem traumas antigos quando o assunto é discricionariedade no recrutamento de servidores públicos. É quase automática a associação do uso de cargo público como moeda de troca política ou para favoritismos pessoais. Precisamos, no entanto, superar esse trauma coletivamente, a partir do entendimento de que é possível ter maior flexibilidade dos métodos de seleção, sem que tais avaliações sejam subjetivas.
Chegou a hora de construirmos o serviço público do futuro, formado por pessoas que enxerguem o emprego público não como uma forma de ter estabilidade irrestrita, mas como um meio de transformar o Estado brasileiro.
* Helena Wajnman é diretora-executiva da República.org.
** Ana Luiza Pessanha é analista de projetos.
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