O ministro André Mendonça, do Supremo Tribunal Federal (STF), pediu vista (mais tempo para análise) no processo que trata da adoção ou não do marco temporal como critério para demarcação de terras indígenas, aberto pelo ministério público de Santa Catarina e defendido pelo governo do ex-presidente Jair Bolsonaro. O pedido se deu após uma proposta do ministro Alexandre de Moraes para que se estabeleça um novo protocolo para tratar do litígio na demarcação de terras indígenas.
A tese do marco temporal define que só são válidas as demarcações de terras que eram ocupadas por comunidades indígenas na data da promulgação da Constituição de 1988, invalidando assim as reservas que se encontram sob disputa. Sua adoção poderia resultar na anulação de 63% das terras indígenas.
O processo estava suspenso desde 2021, e a previsão era de sua conclusão nesta quarta-feira (7). André Mendonça pediu vista para avaliar a proposta de Alexandre de Moraes, prorrogando o julgamento em até 90 dias.
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O caso que motivou o processo foi a motivou a discussão trata da disputa pela posse da Terra Indígena (TI) Ibirama, em Santa Catarina. A área é habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani, mas sua posse é questionada pelo governo. O relator Edson Fachin já havia votado contra a adoção do marco temporal e dado razão às comunidades originárias, enquanto Nunes Marques votou pela adoção e consequente desapropriação da referida TI.
O conceito de marco temporal foi estabelecido em um julgamento no STF pela delimitação da reserva Raposa Serra do Sol, em Roraima, concluído em 2009. O relator foi o então ministro Carlos Ayres Britto, que votou pela manutenção da reserva indígena. Apesar do resultado, o relatório é utilizado por defensores do marco temporal para argumentar que se trata de uma questão já pacificada na Corte.
Proposta de Moraes
Em seu voto, Moraes chamou atenção para a dificuldade para se chegar a um consenso sobre o tema. “Essa é uma das questões mais difíceis juridicamente não só no Brasil, como no resto do mundo. (…) É uma questão que vem afetando a paz social por séculos sem que haja até hoje um efetivo modelo a ser seguido. Nenhum país no mundo conseguiu resolver de forma plena, satisfatória essa questão”, relembrou.
O agravamento da tensão entre descendentes de colonizadores e comunidades originárias resultou em um fenômeno generalizado de insegurança jurídica sobre a questão das demarcações indígenas, inclusive em países desenvolvidos, como nos casos do Canadá e da Austrália. “Não há modelo correto a ser seguido porque não há modelo no mundo. É uma triste e dura realidade, e no Brasil isso não foi diferente”, lamentou.
Nesse contexto, o magistrado relembra que o STF iniciou a discussão no caso Raposa Serra do Sol, quando foi criado o conceito de marco temporal. “O que se buscou naquele momento foi encontrar um ponto de equilíbrio entre o direito fundamental daqueles povos e a propriedade privada, tudo sob a luz de garantir uma maior segurança jurídica, estabilidade e a paz social no campo”, explicou.
Posteriormente, porém, ele ressaltou que o STF ampliou os critérios de demarcação em outros processos, passando a resguardar também as terras onde o entendimento é o de que os povos indígenas foram expulsos violentamente em algum momento anterior à promulgação da Constituição.
Apesar de se tratar de coisa julgada, Moraes ressalta que, em muitos casos, o poder público não é capaz de comprovar se houve ou não a expulsão violenta de comunidades. Nesses casos, o marco temporal deixa de oferecer a segurança jurídica proposta. “Estaríamos ignorando totalmente direitos às comunidades indígenas conclamados pela Constituição, mesmo sabendo que aquela área é comprovadamente indígena mas que não guardaria contemporaneidade pelo marco temporal”.
Ele apontou para um caso da década de 1930 de uma aldeia que foi exterminada e que, desde então, os sobreviventes continuaram impedidos de retornar por risco de assassinato. “Será que é possível ignorar totalmente essa comunidade indígena por não existir contemporaneidade entre o marco temporal e o esbulho?”, questionou.
Paralelamente, a União e os governos estaduais acumulam um histórico de mais de um século de distribuição e venda de terras ocupadas em algum momento por indígenas sem o conhecimento dos novos donos, resultando em décadas de conflitos, alguns alcançando áreas urbanas. Ele cita como um forte exemplo disso o caso dos veteranos do corpo de Voluntários da Pátria, soldados que se ofereceram a lutar na guerra do Paraguai em troca de terras, sem saber que muitas eram fruto da expulsão de comunidades indígenas. Hoje, muitas dessas terras são alvo de disputa.
Moraes acompanha Fachin na proposta de não utilizar o marco temporal como critério delimitador. Em seu lugar, propõe a responsabilização do poder público nas situações em que proprietários adquiriram terras em boa-fé sem que fossem informados do risco de se tratar de uma terra indígena no momento da demarcação. “Há casos em que, mesmo constatado que é terra originária, de comunidades indígenas, não é de interesse público, nacional, da paz social, simplesmente destruir toda aquela comunidade que já existe há 100, 130 ou mesmo 60 anos, havendo a necessidade de compensação de terras”.
Nesses casos, o ministro sugere que cabe ao poder público oferecer uma compensação ao proprietário de boa-fé, seja na forma de uma indenização integral pela terra perdida, seja na forma da oferta de outra terra acompanhada de indenização pelas benfeitorias. Nos casos de demarcação sobre área urbana, o poder público deverá oferecer uma terra alternativa às comunidades indígenas, que podem optar por aceitar ou não essa outra terra.
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