O Ministério Público do Rio Grande Sul está recorrendo da absolvição de dois homens denunciados por furtar alimentos com prazo de validade vencido que estavam num pátio de um supermercado em Uruguaiana (fronteira oeste do estado). Conforme o boletim de ocorrência policial, em 5 de agosto de 2019, eles invadiram uma área restrita do estabelecimento, reviraram o setor de descartes e fugiram com mercadorias vencidas. Eles foram presos logo depois com 50 fatias de queijo, 14 unidades de linguiça calabresa, nove de presunto e cinco de bacon vencidos. A apelação chegou à segunda instância do Tribunal de Justiça gaúcho nessa quarta-feira (27).
Segundo a Defensoria Pública do Rio Grande do Sul, que defende os réus, os produtos, que estavam numa área do supermercado onde seriam triturados e descartados, foram avaliados em R$ 50,00. Após serem autuados em flagrante, foram soltos. O inquérito foi concluído e enviado ao MP, que decidiu pela apresentação da denúncia e não pelo arquivamento, conforme suas prerrogativas.
O juiz da primeira instância alegou o princípio jurídico da insignificância, previsto no Direito brasileiro e mundial, para absolver sumariamente os réus, em fevereiro deste ano. “Não há justa causa para a presente ação penal em face do princípio da insignificância. No caso, os acusados teriam furtado bens (gêneros alimentícios com os prazos de validade vencidos) avaliados em R$ 50,00, os quais foram restituídos ao proprietário”, diz a sentença do juiz André Atalla, da 1ª Vara Criminal de Uruguaiana.
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Conforme o magistrado, ainda que os acusados apresentem antecedentes, “o princípio da insignificância está relacionado com a envergadura da lesão ao bem jurídico tutelado pela norma, não se podendo considerar fatos alheios a conduta, tal como antecedentes, para ignorar o fato concreto”, que é o furto de alimentos inapropriados para o consumo humano.
Inconformado, o MP recorreu em julho deste ano da sentença por meio de apelação ao Tribunal de Justiça estadual. O promotor substituto Luiz Antônio Barbará Dias alegou que, “embora o bem jurídico tutelado tenha sido afetado de forma irrelevante economicamente, é inviável a aplicação do princípio da insignificância quando se trata de apelado com antecedentes criminais”. O MP citou também o fato de os réus terem sido acompanhados de um menor de 14 anos no furto, o que é “facilitação de corrupção de menores”, conforme a apelação. Segundo o próprio MP, os acusados tinham registro policial de furtos de baixo valor.
Contraditoriamente, o promotor argumentou na mesma apelação, ao reafirmar o pedido de condenação da denúncia, que “o valor do objeto material sobre o qual recaiu a conduta do réu não se mostra ínfimo ao ponto de caracterizar-se como um insignificante penal”. Para isso, citou jurisprudência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que condenou um réu por furto de R$ 60,00 em 2018. Nesse caso, no entanto, o réu tinha condenação por roubo (pressupõe ameaça ou violência) e outra ação penal também por roubo. Ou seja, casos totalmente diferentes.
O Superior Tribunal de Justiça reconhece o princípio da insignificância e a exclusão do crime mesmo em caso de o denunciado ter antecedentes de furtos a depender da mercadoria furtada. Na resposta à apelação apresentada no início deste mês, o defensor público Marco Kaufmann argumentou: “Tristes tempos em que LIXO (alimento vencido) tem valor econômico. Nesse contexto, se a mera leitura da ocorrência policial não for suficiente para o improvimento do recurso, nada mais importa dizer”.
Agora, caberá aos desembargadores decidirem o destino dos dois homens. Caso sejam condenados, a Defensoria vai recorrer ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), que tem reconhecido o princípio da insignificância em casos como esse. A ação penal está tramitando lentamente.
Moradora de rua
Há 15 dias, o STJ mandou soltar uma moradora de rua de São Paulo presa por furtar R$ 21,69 em alimentos num supermercado. Segundo o ministro relator, Joel Ilan Paciornik, “a lesão ínfima ao bem jurídico e o estado de necessidade da mulher não justificam o prosseguimento do inquérito policial”, apesar de a mulher já ter sido indiciada outras vezes por furtos.
Paciornik apontou que a jurisprudência do STJ não reconhece a insignificância nos casos de prática habitual de delitos, mas ponderou que há situações em que o grau de lesão ao bem jurídico tutelado pela lei penal é tão ínfimo que não se poderia negar a incidência do princípio.
“Absurdo”
Em junho deste ano, viralizou o vídeo de parte de um julgamento do Superior Tribunal de Justiça, no qual um indignado ministro Sebastião Reis, da Sexta Turma, criticou o Ministério Público por propor e recorrer de ações penais por furtos de pequeno valor, ignorando o entendimento já consolidado pelas Cortes Superiores. No caso, o MP de Minas Gerais denunciou um réu primário pobre por furto de dois steaks de frango no valor de R$ 2,00 de um supermercado. O juiz de primeiro grau determinou a abertura do processo penal, a Defensoria recorreu à segunda instância do Tribunal de Justiça de Minas, que manteve a ação penal.
“É um absurdo termos que julgar um habeas corpus para trancar uma ação penal em que se discute a insignificância de um furto de bem de valor R$ 4,00. Esse erro acontece, esse volume de processos existe hoje não só em razão do Ministério Público, mas da advocacia que insiste em teses superadas, dos tribunais que insistem em não aplicar os entendimentos pacificados do STJ”.
Durante o julgamento, o ministro revelou que, entre 2017 e 2020, o número de novos processos que chegaram ao STJ saltou de 84 mil para 124 mil. “É humanamente impossível julgar todos esses processos. Não tem lógica. Dizer que essa política que adotamos diminui a criminalidade é brincadeira. Estamos num caminho completamente equivocado. E esse caso é a prova viva. Onde já se viu o tribunal superior perder tempo em julgar HC para trancar uma ação onde o valor do bem violado é de R$ 4,00? Quanto que se gastou já com esse processo?”, questionou.
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