Catarina Duarte
Ponte Jornalismo
A aprovação da “lei das saidinhas” acendeu um alerta. O texto, que ainda precisa ser sancionado pelo presidente Lula (PT), acaba com as saídas temporárias em datas comemorativas. Entidades avaliam que o PL, na prática, extingue o regime semiaberto. Para além do fim do benefício, o projeto retoma o exame criminológico como entrave para progressão de pena, o que pode gerar gastos milionários aos cofres públicos. Em São Paulo, por exemplo, o custo projetado para atender à demanda seria de mais de R$ 66 milhões, calculam as organizações críticas à proposta.
Votado na Câmara de Deputados na quarta-feira (20/3), o PL 2253/22 autoriza as saídas apenas para estudo em cursos profissionalizantes, para aulas de ensino médio ou superior ou para trabalhar. O texto atual da Lei de Execução Penal (LEP) permite que presos do regime semiaberto saiam até cinco vezes por ano para “participação em atividades que concorram para o retorno ao convívio social”.
No calor da morte do sargento da Polícia Militar Roger Dias da Cunha, em Minas Gerais — assassinado em janeiro por um condenado que estava em saída temporária —, o projeto passou a tramitar de forma acelerada. Apenas a Comissão de Segurança Pública do Senado o avaliou antes que passasse pelo plenário. A aprovação na Câmara não mudou uma linha da proposição dos senadores. Agora, cabe ao presidente Lula sancionar ou não a legislação que acabou por levar o nome do policial assassinado: Lei Sargento PM Dias.
Mas há uma série de questões a serem respondidas. Quem já cumpre pena será afetado? O que são os exames criminológicos? O STF pode barrar a lei? A Ponte conversou com especialistas para responder essas questões e entender o que pode acontecer daqui para a frente. Veja a seguir:
O que diz a nova lei das saídas temporárias?
O PL 2253/22 altera a LEP. O ponto central é o fim das saídas temporárias justificadas pelo espectro da ressocialização. Se sancionada como está, os presos do regime semiaberto passam a ter direito a saídas apenas para estudo e trabalho.
A proposta também exige exame criminológico para progressão de pena. O que significa que, para um preso passar do regime fechado para o semiaberto, por exemplo, ele tem de ser submetido ao procedimento.
O texto também prevê que o juiz de execução penal possa exigir o uso de tornozeleira eletrônica para uma gama maior de situações.
Uma nota técnica assinada por 69 entidades contrárias ao PL (incluindo Defensorias estaduais, seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil e ONGs como Conectas e Pastoral Carcerária, entre outras) diz que a lei decreta o fim do regime semiaberto. “Diante da existência de poucas vagas de trabalho e estudo disponibilizadas às pessoas presas, a extinção da saída temporária iguala o regime semiaberto ao regime fechado, ferindo o princípio da individualização das penas”, afirma o texto.
Tem direito à progressão de pena para o regime semiaberto o condenado que cumpre no mínimo 1/6 (um sexto) da pena determinada pela sentença. No caso de crimes hediondos, a progressão se dará após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, em caso de réus primários. Já os reincidentes têm de cumprir 3/5 (três quintos).
Presos em regime semiaberto podem trabalhar em ambientes externos aos estabelecimentos penais e também frequentar cursos fora das prisões. Pela lei atual, apenas presos nesse regime têm direito às saídas temporárias.
“Caso o PL 2253/2022 venha a ser aprovado, na prática, extinguirá materialmente a própria existência do regime semiaberto. Nos termos do artigo 36 da LEP, com a extinção ou inviabilização completa das saídas temporárias, a única diferença material entre os regimes fechado e semiaberto seria o fato de que presos em regime fechado apenas poderiam exercer trabalho externo ’em serviço ou obras públicas realizadas por órgãos da Administração Direta ou Indireta, ou entidades privadas, desde que tomadas as cautelas contra a fuga e em favor da disciplina’, ao passo que presos em regime semiaberto poderiam exercer outras formas de trabalho”, diz o texto, publicado antes da votação no Congresso.
Leia a íntegra da nota técnica
A lei já está em vigor?
Não. Após a aprovação do legislativo, o PL segue para sanção presidencial, procedimento padrão. O prazo é de 15 dias para uma posição do presidente. O professor de Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FVG/SP) Yasser Gabriel explica que existem opções que podem ser tomadas por Lula.
Uma delas é o veto. “O presidente não pode alterar o conteúdo do projeto aprovado, salvo para vetá-lo, no todo ou em parte”, diz. Caso haja um veto parcial, a parte aprovada passa a valer como lei e o trecho vetado volta para análise pelo Congresso. “O Congresso então irá decidir se mantém o veto, ou se derruba. Nessa última hipótese, a parte antes vetada passa a integrar o conteúdo da lei”, fala.
Há ainda outra possibilidade. Caso o presidente não se posicione sobre o PL no prazo, ele é aprovado de forma táctica, — procedimento previsto na Constituição Federal que impõe a sanção diante do silêncio do chefe do Executivo. “A ideia é fazer com que a presidência da República não seja um obstáculo a projetos de lei”, diz Maíra Zapater, professora de Direito Penal e Processual Penal do curso de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Se sancionada, a lei vale para todos os presos?
Não há um denominador comum. Maíra Zapater diz que esse deve ser um dos primeiros desafios do Judiciário caso o texto seja sancionado. Isso acontece por uma disputa de interpretação sobre o tipo de norma tratada aqui. A dúvida é se se trata de uma norma do Direito Penal ou norma de organização judiciária.
A professora explica que normas penais só podem ser aplicadas para casos que aconteçam depois da sua vigência. Assim, se as saídas temporárias forem consideradas normas penais, a restrição só passa a ter validade para quem for preso a partir da sanção.
Isso muda caso sejam consideradas normas de organização judiciária. Neste caso, ela deixa de ser considerada uma lei penal e, assim, pode ser aplicada a todas as condenações que estão em curso.
Maíra Zapater defende que a questão é uma norma penal. “Acompanho quem diz que as normas de execução penal são também normas penais, porque ela está regulando como a punição será aplicada. Então, qualquer norma que diga respeito a livramento condicional, saída temporária, progressão de regime, em uma leitura constitucional, tem que ser pensada como regras que falam da privação de liberdade. Se é uma privação da liberdade, precisa seguir o princípio da anterioridade da lei penal. Esse me parece o melhor entendimento, porém, há quem sustente que é uma norma de organização penitenciária e, portanto, não teria uma natureza penal. Esse é o primeiro ponto que a extinção da saída temporária trará como discussão”, fala.
O que são exames criminológicos, que tiveram uso ampliado na nova lei?
Os exames criminológicos foram previstos no texto original da LEP, mas a determinação de sua realização para a progressão de regime foi suprimida pela lei 10.792/2003. A professora Maíra Zapater explica que o desuso teve como base a ausência de qualquer eficácia científica comprovada.
“Não tem nada que demonstre que um exame psiquiátrico, psicológico, pedagógico, de todos os profissionais que estão ali envolvidos, possam atestar que uma pessoa tem condições de ficar em liberdade ou não”, fala.
A nota técnica elaborada por entidades contrárias ao PL corrobora o entendimento da professora. O texto lembra que o Conselho Federal de Psicologia, em uma resolução de 2011, vedou que aos profissionais a “elaboração de prognóstico criminológico de reincidência, a aferição de periculosidade e o estabelecimento de nexo causal a partir do binômio delito-delinquente”. A decisão foi justificada pelo entendimento de que os conceitos não correspondem ao padrão científico que a psicologia se propõe.
As entidades têm outro ponto contra o exame. Elas argumentam haver um alto custo na aplicação desse instrumento. Em São Paulo, a despesa para a realização do procedimento é de R$ 648,85 para cada exame, considerando apenas a remuneração dos funcionários envolvidos. Ficam de fora do cálculo os recursos materiais necessários para execução.
Com base em dados do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo de 2023, as entidades estimaram que, se o PL já estivesse em vigor, seriam gastos mais de R$ 66 milhões para atender os 102.016 pedidos de progressão de regime.
A professora Maíra Zapater diz que o exame teve uma difícil implementação. Pela demora e precariedade, o resultado foi que ele acabou contribuindo para o aumento da população prisional.
“Era frequente que, quando estava marcado o exame, a pessoa já tinha direito a livramento condicional, que seria um benefício posterior à progressão de regime. Isso acabava subvertendo todo o sistema de progressão de regime da norma. Voltar essa exigência agora é voltar o que já está discutido, que já tinha sido pacificado. É um retrabalho, é voltar um ponto que já tinha sido demonstrado que não estava funcionando, ao que parece, por mero populismo penal”, afirma Zapater.
O que a lei diz sobre as tornozeleiras eletrônicas?
A legislação atual prevê o uso de tornozeleiras eletrônicas para casos em que as pessoas estejam em saída temporária ou cumprindo prisão domiciliar. O PL propõe a ampliação do uso para quem cumpre pena em regime aberto, livramento condicional ou pena restritiva de direitos, quando houver limitação de frequentar determinados locais.
Para entidades críticas ao PL, essa medida aumentará o estigma contra pessoas condenadas e aumentará os gastos do Estado com a compra desses equipamentos. Estimativa feita pelas organizações aponta que, apenas para atender os presos em prisão domiciliar em São Paulo, seria necessário gastar R$ 970.888,14.
O que pode acontecer depois da sanção?
Ainda que a lei entre em vigor, ela pode ser contestada no Supremo Tribunal Federal (STF). Conforme Maíra Zapater, é possível que se questione a constitucionalidade da lei porque diz respeito à individualidade da pena, que é um princípio constitucional.
O artigo 5º da Constituição determina que as pessoas presas terão sua pena individualizada — conforme o comportamento e demais aspectos, a pessoa terá benefícios. “Suprimir as saídas temporárias pode ser interpretado como uma supressão inconstitucional”, diz Zapater.
A professora explica que outro caminho é haver uma provocação ao STF por meio de mecanismos da Constituição, como Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) ou Ação Declaratória de Inconstitucionalidade (ADI).
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