Queremos um julgamento justo, exemplar e educativo do caso do ministro de Estado da Educação, Milton Ribeiro. Ato LGBTIfóbico não é opinião, é crime. Quem disse foi o STF (ADO 26/MI 4733, Habeas Corpus 82.424/2004)
O pastor Milton Ribeiro construiu uma trajetória até chegar ao cargo de ministro da Educação no atual governo federal. Foi ordenado pastor em 1982. Possui um notável leque de graduações e especializações na área da Teologia e do Direito e é mestre em Direito e doutor em Educação. Foi professor, reitor e vice-reitor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. É integrante da Comissão de Ética Pública da Presidência da República, entre outras realizações.
No entanto, no dia 24 de setembro de 2020, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, na condição de ministro de Estado da Educação, Milton Ribeiro, afirmou:
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“Acho que o adolescente que muitas vezes opta (sic) por andar no caminho do homossexualismo (sic) tem um contexto familiar muito próximo, basta fazer uma pesquisa. São famílias desajustadas (sic), algumas. Falta atenção do pai (sic), falta atenção da mãe (sic). Vejo menino de 12, 13 anos optando (sic) por ser gay, nunca esteve com uma mulher de fato (sic), com um homem de fato (sic) e caminhar por aí. São questões de valores e princípios.”
O mais grave nessa fala foi colocar a culpa nas mães, nos pais e nas pessoas responsáveis, taxando-as de “desajustadas”. Onde foram publicados os estudos científicos comprovando essa tese? Um doutor em Educação deveria se posicionar dessa maneira, construindo generalizações sem fundamentação? Usou duas vezes a palavra “optar”: ninguém optaria, por ser objeto de preconceito e/ou discriminação, por determinada sexualidade. Não é opção sexual. O termo correto é “orientação sexual”, que também não é um “valor” ou um “princípio”. Sugerimos ler a obra Comportamento sexual no homem humano, de Kinsey (1948), publicada com base nos dados de uma das maiores pesquisas já realizadas no campo da sexualidade humana. Ela identificou uma escala de orientação sexual, variando desde 100% heterossexual, passando pela bissexualidade, até 100% homossexual. Mais recentemente a assexualidade está surgindo como uma quarta orientação. Quando usa o termo “homossexualismo” (sic), se demonstra totalmente desatualizado. O Brasil foi o quinto país a retirar, em 1985, a homossexualidade como distúrbio da Classificação Internacional de Doenças, depois dos quatro países da Escandinávia, e no dia 17 de maio de 1990, a Assembleia Mundial da Saúde aprovou sua retirada no mundo todo. O termo correto é homossexualidade. Além disso, manifesta-se a perspectiva binarista, se não machista, de “mulher de fato” e “homem de fato”. Segundo quem?
Eu, Toni Reis, gay, 57 anos, doutor em Educação, mestre em Filosofia, especialista em sexualidade humana, pedagogo e professor, casado com o britânico David Harrad há 32 anos (somos pais de Alyson, Jéssica e Filipe), católico apostólico romano, fiquei estarrecido – assim como a maior parte da comunidade LGBTI+ – com essa afirmação feita por quem deveria ser exemplo do cumprimento dos preceitos (estes sim são princípios) da Constituição Federal, tais como a dignidade humana (art. 1º) e a promoção do bem de todos, sem quaisquer formas de preconceito e discriminação (art. 3º), entre outros.
A fala do ministro me fez lembrar da frase de Paulo Freire: “Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. De fato, quando a pessoa à frente da pasta da Educação faz uma afirmação dessa natureza, podemos entender que o Brasil ficou “sem ela”. Isto é, sem a educação, cuja finalidade é “o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania”. Em vez disso, a educação no Brasil ficou sujeita à perpetuação de crendices e de preconceitos por sua autoridade máxima.
As consequências de atos como este se revelam em pesquisas, como a de abrangência nacional realizada entre 2015 e 2016 com 1.016 estudantes LGBTI+ com idades variáveis entre 13 e 21 anos. Destes, 73% foram agredidos/as verbalmente, 36% já sofreram agressões físicas e 60% se sentiam inseguros/as na escola no último ano em razão de serem LGBTI+.
Pensei na minha família, na minha querida falecida mãe. É no mínimo um insulto o ministro se referir às nossas famílias dessa forma. Quantas mães, quantos pais, quantos familiares de LGBTI+ foram afetados por essa fala criminosa! Talvez o ministro Milton Ribeiro tenha se baseado no obscurantismo da Idade Média de Tomas de Aquino e de seus predecessores Santo Agostinho e São Paulo, que diziam que nós éramos abomináveis e merecíamos a morte. Os estudos de nosso decano, professor doutor Luiz Mott, mostram que na Inquisição portuguesa 4.419 homens foram denunciados por diferentes práticas homoeróticas, em torno de 450 foram presos e pelo menos 30 foram queimados na fogueira. Lésbicas foram chicoteadas em praça pública, que o diga Felipa de Souza. Mas os tempos mudaram. A Inquisição acabou em 1821, há 200 anos. O Estado brasileiro é laico, não cabe ao ministro de Estado da Educação proferir publicamente opiniões de cunho íntimo que ferem a dignidade humana alheia.
Parabéns à Procuradoria-Geral da República, na pessoa do Dr. Humberto Jacques de Medeiros, por agir para fazer cumprir as decisões do STF sobre racismo e atos LGBTIfóbicos. A denúncia feita ao STF sobre a fala do ministro da Educação tem respaldo na tese vencedora do julgamento da ADO 26 (criminalização da LGBTfobia no Brasil):
“A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero”.
O ministro não matou absolutamente ninguém com sua fala, mas afiou as facas, engatilhou os revólveres, juntou as pedras dos assassinos das mais de 300 pessoas LGBTI+ mortas cruelmente todos os anos no Brasil por serem LGBTI+.
Ao relator sorteado, o querido ministro Dias Toffoli, e aos outros componentes desta egrégia corte, formalizo o meu pedido para que o julgamento do ministro Milton Ribeiro seja justo, exemplar e educativo. O Brasil pode estar “lascado” (vide Gil do Vigor no BBB), meio bagunçado, mas as instituições têm demonstrado que estão funcionando na base da laicidade e da Constituição, aquela que o grande deputado Ulysses Guimarães alcunhou de “Constituição cidadã”. Fomos, somos e seremos amici curiae das ações no STF que dizem respeito à cidadania e aos direitos das pessoas LGBTI+.
A Justiça tem que ser cega, mas com os ouvidos bem abertos, para poder se posicionar pelo respeito a todas as famílias, pelo diálogo (por mais mais difícil que seja). Como gay, como cidadão brasileiro em pleno gozo dos meus direitos, quero continuar me orgulhando desta corte.
Na expectativa de contarmos com a condenação do Senhor Milton Ribeiro, conclui-se esta carta aberta.
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