Parece brincadeira. Mas é real. Por meio dos perfis das redes sociais do Ministério da Educação (MEC) e da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), autarquia da pasta no Recife, o governo do presidente Bolsonaro (PL) comemorou nesta sexta-feira (21) o “descobrimento do Brasil”. A narrativa carregada de negacionismo histórico – já que o que hoje compreendemos como Brasil já era habitado por povos indígenas – e eurocentrismo – que coloca os europeus no centro de todas as ações humanas – revela, também, uma postura política do governo. Historiadores ouvidos pelo Congresso em Foco afirmam que, ao comprar a narrativa do colonizador português, o governo atende interesses políticos ao esconder que a conquista foi praticada por meio de muita violência e repressão aos povos indígenas e negros africanos, que posteriormente vieram ao país como escravos.
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A professora do curso de História da Universidade de Pernambuco (UPE) Janaína Guimarães da Fonseca Silva defende que essa narrativa causa verdadeiros prejuízos aos grupos étnicos e minorias que não são minorias. “O termo descobrimento reflete a chegada dos portugueses aqui. O que não é um descobrimento porque já havia pessoas aqui. Então, quando a gente fala sobre isso, a gente está dando um poder de relato da história aos conquistadores, aos invasores. Nós estamos tirando dos povos originários o direito sobre sua história”, criticou. “Descobrimento é um termo que não se aplica, ou que não deveria se aplicar, numa historiografia que preze por um currículo inclusivo e que pense a pluralidade dos sujeitos históricos. Não apenas o protagonismo branco”.
Segundo a pesquisadora, o termo “descobrimento” foi usado desde que o Brasil ainda era colônia de Portugal, e, posteriormente, foi utilizado por uma historiografia do Estado Imperial, com o país já independente no século 19. “A partir desse período, nós passamos a ter uma historiografia dita oficial que passa a usar esse termo para falar da chegada dos portugueses, de como os portugueses chegaram e como isso foi o eixo principal de nossa formação. A partir desses heróis portugueses e brancos, outras populações adentraram. Na verdade, os coadjuvantes seriam os povos originários, os africanos”, destacou. “Os nossos currículos ainda são muito focados nessas narrativas eurocêntricas. O que não pode é um órgão ou órgãos como o MEC e a Fundaj estarem reproduzindo esse tipo de narrativa”.
A professora ainda defende que a utilização do termo “descobrimento” pelo governo tem suas razões políticas. “A história nasce como disciplina para justificar e construir identidades para as nações. Se escolhe quais identidades se tem para as nações. O termo descobrimento e a adoção dele pelos governos vem para se reafirmar o local que se quer para essa história”, reforça. “Uma história que reafirma a elite, que reafirma as relações de poder, que reafirmar o lugar dos povos originários, negros e ciganos, contribui para essa exclusão. Essa política vai contra todo um processo as pesquisas e avanços nos últimos anos. A forma de tratar a história é prejudicial e acaba ocupando um lugar nas redes e nos espaços e forma uma pessoa que não é entendedora da história para o que é falso, que é uma inverdade”.
O historiador e professor da Unibra Arthur Nascimento também concorda com o posicionamento político do termo. “O uso do termo descobrimento hoje atende a interesses políticos, por exemplo, a negação de que nossa história foi forjada com muito autoritarismo e violência. Questões que reverberam nos debates dos movimentos sociais, como a luta dos povos indígenas ou ainda questões raciais, de igualdade de gênero e afins”, destacou. Ele também concorda que se trata de um desserviço as publicações do MEC e da Fundaj. “Isso põe em evidência conceitos já ultrapassados, que são ressignificados por um uso meramente político. Ideias como estas acabam sendo apropriada, especialmente pelos mais jovens. Que levam esses conceitos para campos ideológicos, partidários”.
Chegada de Cabral
O dia 22 de abril é marcado pelo dia em que o navegador Pedro Álvares Cabral chegou ao litoral da Bahia no ano de 1500. Há várias narrativas sobre outros navegadores que estiveram no Brasil antes desta data. O historiador Arthur do Nascimento destaca que a discussão sobre o termo descobrimento ganhou força ainda nos anos 1990. Ele cita, por exemplo, o trabalho do professor Francisco Carlos Teixeira, que escreveu o capítulo “Conquista e Colonização da América Portuguesa”, no livro História Geral do Brasil, organizado por Maria Yedda Linhares.
“Infelizmente, esses debates demoram a chegar nos livros didáticos, por uma série de fatores. Creio que a partir dos anos 2000, com a ‘celebração’ dos 500 anos do Brasil (no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso) muitas dessas questões ganharam evidência. Hoje, temos materiais didáticos que apesar do uso convencional do termo, problematizam a questão. Outros, entretanto, não se atualizaram”.
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