Luciano Caparroz Pereira dos Santos*
No episódio de criação do Partido Aliança, nova sigla do presidente da República, é necessário que se tenha como premissa de que não há nada de anormal no desejo de se fundar uma nova legenda eleitoral. Afinal, a liberdade associativa é garantida no inciso XVII do Artigo 5º da Constituição, que determina que somos livres para criar ou participar de associações desde que seus fins sejam lícitos e que não tenham caráter paramilitar.
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Com as ressalvas legais e formais, portanto, a iniciativa não deve ser rechaçada por si só. No entanto, uma questão vem gerando desconforto e questionamentos: o fato de os criadores do partido estarem se utilizando de uma articulação junto à cúpula do sistema cartorário, por meio de sua associação, para coletar assinaturas de apoio pela via de reconhecimento de firmas.
Em princípio, também não há nada de irregular em usar um expediente burocrático e combatido por engessar a desburocratização – portanto totalmente legal. O que se questiona é que a associação faça campanha para coleta de assinaturas: ainda que seus vídeos e apoio sejam para que utilizem o serviço de reconhecimento de firmas, poderia aí se estar utilizando um meio oficial e público para chamar simpatizantes para coleta de assinaturas de apoio a um partido.
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A iniciativa junto à cúpula dos cartórios se insere em um processo mais geral que opera em áreas cinzentas da ordem legal. Foi amplamente divulgado, por exemplo, o possível engajamento de lideranças religiosas, especificamente evangélicas, na campanha de coleta de assinaturas. A Justiça Eleitoral tem se dedicado no último período a tentativas de coibir a influência abusiva do poder religioso no jogo político durante campanhas eleitorais. A depender de como essa adesão ocorra, é necessário ponderar também até que ponto laicidade do sistema político não estaria ameaçada, o que poderia ensejar uma posição regulatória da justiça especializada.
É reconhecido o caráter peculiar, do ponto de vista de seu regime jurídico, do sistema cartorial no Brasil. Evitando debates bizantinos, é evidente também que estamos tratando de serviço de interesse notadamente público – não à toa, sob a alçada fiscalizatória do CNJ. Não há como olvidar o fato de que os patamares mínimos de impessoalidade estão em xeque, mesmo se tendo em mente a complexidade institucional dos atores envolvidos.
Este procedimento foi alvo de uma representação de diversos partidos junto ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e que, em resposta, o Ministro Corregedor considerou que não existe irregularidade em princípio – a questão deve ainda ser confirmada na decisão do mérito.
Muito melhor teria sido o Congresso ter aprovado o Projeto de Lei 7574/2017, que trata da instituição de novo marco legal para o exercício da soberania popular direta, o que inclui a coleta de assinaturas digitais para projetos de iniciativa popular. Este é sempre um entrave na conferência das assinaturas. Os projetos já aprovados sempre foram apresentados com subscrição de parlamentares para se evitar a possibilidade de não acolhimento pela impossibilidade de conferência de assinaturas. A aprovação deste projeto com certeza levaria à aplicação do princípio para outros temas, como a criação de partidos.
Está se perdendo uma grande oportunidade de fazermos este debate de forma aprofundada e trabalharmos para sua aprovação, desfazendo assim trava que existe para o exercício da cidadania, uma vez as tentativas de participação direta, como também prevê a Constituição, sofrem também com esta barreira, como se depreende do artigo 1º, parágrafo único, do artigo 14 e do artigo 61, parágrafo 1º da Constituição.
Vale a pena destacar também que a coleta de assinaturas com o reconhecimento de firmas não elimina a necessidade de conferência pela Justiça Eleitoral, que deverá validar estas assinaturas, atentando para os critérios de o eleitor assinante estar no gozo do direito de votar e ser votado, e também sua não filiação a outra legenda.
Está passando da hora de se modernizar a forma de exercício da vontade de participação, seja para criar partidos ou para apresentar projetos de iniciativa popular. Em um mundo que já vive da tecnologia, estamos no século passado. Quando vamos tratar destes temas?
* Luciano Caparroz Pereira dos Santos é integrante da Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político e advogado especialista em Direito Eleitoral
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