Antônio Augusto de Queiroz *
Luiz Alberto dos Santos **
A revogação da Medida Provisória (MPV) 905 pela MPV 955, editada em 20 de abril de 2020 – supostamente para abrir caminho para a edição de nova MPV sobre o mesmo tema da MPV revogada – criou uma celeuma enorme nos meios políticos e jurídicos.
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O objetivo deste texto é esclarecer – à luz da Constituição Federal e da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), em Ação Direta de Inconstitucionalidade em que se firmou, inclusive, tese sobre a questão – se o presidente da República pode ou não “reeditar” uma MPV com o mesmo conteúdo daquela que foi revogada, rejeitada ou perdeu eficácia sem haver sido apreciada, na mesma sessão legislativa em que isto aconteceu.
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A resposta é não. E as razões para isso são muito claras.
A Constituição, em seu artigo 62, § 10, diz expressamente que “É vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo”.
Trata-se de dispositivo introduzido pela EC 32, de 2001, resultado de um processo de discussão sobre as medidas provisórias iniciado em 1995, com a apresentação, no Senado, da PEC nº 1/95, do senador Esperidião Amin. Após votação no Senado, aprovação de substitutivo pela Câmara, nova apreciação pelo Senado e, ao fim, aprovação do novo texto pela Câmara, finalmente a PEC, então tramitando sob nº 472, de 1997, foi aprovada em agosto de 2001, com emendas de redação.
Um dos grandes motivadores da EC 32, de 2001, foi precisamente a necessidade de preservar as prerrogativas do Poder Legislativo, e impedir a reedição de medidas provisórias, como consignou o parecer do Relator no Senado, senador José Fogaça, em 17 de abril de 1997: “Há um grande protesto, há manifestações claras, inequívocas, contundentes, por parte da opinião pública e dos setores especializados, contra as medidas provisórias e sua sistemática de reedições. O próprio Congresso Nacional, pelos mecanismos internos que criamos para votar e pela natureza do instituto das medidas provisórias, viu-se à margem, durante muito tempo, dessa tarefa legislativa.”
E, após examinar a ampliação do prazo de vigência das MPVs, que era até então de 30 dias, mas sem limites formais para a reedição, concluía o relator: “Mas, uma vez editada, ela não pode mais ser reeditada. Fica vedada a reedição de medida provisória em qualquer hipótese.
Se a medida provisória for rejeitada, não pode mais ser reeditada. Se ela sofrer perda de eficácia por decurso de prazo negativo, também não pode ser reeditada. De modo que a reedição de medida provisória vai para o passado, para a história do Brasil, porque isso não mais ocorrerá.”
Da clareza dessa intenção, resultou, após idas e vindas, a atual limitação contida no atual § 10 do art. 62 da Carta Magna.
Para leitores apressados do referido dispositivo constitucional, a interpretação corrente ou do senso comum era de que a reedição só estaria proibida se a rejeição ou perda de eficácia tivesse ocorrido na mesma sessão legislativa (ano legislativo) em que foi editada.
Contudo, não é essa a melhor interpretação da norma. Nem do ponto de vista da interpretação literal, nem da interpretação teleológica, que consulta ao objetivo da norma firmada na Constituição.
Basta ver que, no § 10, não se diz que “é vedada a reedição de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo, na sessão legislativa em que foi editada”.
Não. O texto constitucional é mais sábio do que isso, e, concretamente, diz que “é vedada a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou que tenha perdido sua eficácia por decurso de prazo”.
Com tal formulação, o comando que precede todo resto do dispositivo é a vedação de reedição, e a enumeração das hipóteses se dá de forma dependente do marco temporal “na mesma sessão legislativa”, dependendo a vedação, portanto, do momento em que cada ato ocorra.
Assim, se a medida provisória foi editada no começo da sessão legislativa, não poderá ser reeditada, por perda de eficácia ou rejeição, até o final desta, ou seja, dia 22 de dezembro, data definida no art. 57 da CF. Se for editada na segunda metade da sessão legislativa, por exemplo, até o dia 24 de agosto, vigorará por 120 dias, ou seja, perderá a eficácia no dia 15 de dezembro; poderá, portanto, ser novamente editada no dia 23 de dezembro, ou seja, data que ocorre após o final da sessão legislativa.
Se, porém, for editada após o dia 24 de agosto, perder eficácia após aquela data (22/12), e, assim, o prazo final passa a ocorrer na sessão legislativa seguinte, o que impediria a sua renovação por outra medida provisória.
Já no caso de rejeição, mostra-se evidente que a limitação só pode ser considerada se levado em conta o momento em que esta ocorre, e que obedece ao limite de 120 dias de vigência da medida provisória. Se a medida provisória ainda estiver em vigor no momento em que o Congresso entra em recesso, em 23 de dezembro, interrompe-se a contagem do prazo de vigência. E, quando ele voltar a reunir-se, apreciando a medida provisória, emitirá um juízo de valor. Se negativo, rejeitando-a, é a partir daí que se consolida a vedação de nova medida provisória ser editada.
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O mesmo princípio se aplica – e é ele que inspira a tese adotada pela EC 32/2001 – à vedação prevista no art. 67 da Carta Magna: “Art. 67. A matéria constante de projeto de lei rejeitado somente poderá constituir objeto de novo projeto, na mesma sessão legislativa, mediante proposta da maioria absoluta dos membros de qualquer das Casas do Congresso Nacional.”
Rejeitado o projeto de lei – independentemente de quando tenha tido a sua tramitação iniciada – ele (ou a matéria dele constante) não pode ser novamente apresentada, exceto se por maioria dos membros da Casa.
O sentido de ambas as normas é o mesmo: impedir que a deliberação soberana dos parlamentares seja contornada pela reiteração de proposição, “forçando” a sua aprovação.
No caso das MPVs, a norma constitucional específica vai além, pois não permite ao chefe do Executivo reiterar a medida provisória rejeitada expressamente, ou que tenha sido rejeitada tacitamente, ao não ser apreciada no prazo de 120 dias a contar da sua edição.
E, novamente, somente ao término do prazo é que se tem o fato impeditivo, e o que importa é o momento em que ele ocorre, e não o da edição da medida provisória que foi rejeitada ou perdeu a eficácia.
O plenário do STF, ao apreciar a Adi 5.727, em 27 de março de 2019, promovida pelo Partido dos Trabalhadores contra a reedição da MP 782/2017, assim decidiu:
CONSTITUCIONAL. PROCESSO LEGISLATIVO. MEDIDA PROVISÓRIA. ESTABELECIMENTO DA ORGANIZAÇÃO BÁSICA DOS ÓRGÃOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA E DOS MINISTÉRIOS. ALEGAÇÃO DE OFENSA AO ART. 62, CAPUT e §§ 3º e 10, CRFB. REQUISITOS PROCEDIMENTAIS. REJEIÇÃO E REVOGAÇÃO DE MEDIDA PROVISÓRIA COMO CATEGORIAS DE FATO JURÍDICO EQUIVALENTES E ABRANGIDAS NA VEDAÇÃO DE REEDIÇÃO NA MESMA SESSÃO LEGISLATIVA. INTERPRETAÇÃO DO §10 DO ART. 62 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. CONVERSÃO DA MEDIDA PROVISÓRIA EM LEI. AUSÊNCIA DE PREJUDICIALIDADE SUPERVENIENTE. ADITAMENTO DA PETIÇÃO INICIAL. PRECEDENTES JUDICIAIS DO STF. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE JULGADA PROCEDENTE.
(…) 5. Impossibilidade de reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória revogada, nos termos do prescreve o art. 62, §§2º e 3º. Interpretação jurídica em sentido contrário, importaria violação do Princípio da Separação de poderes. Isso porque o presidente da República teria o controle e comando da pauta do Congresso Nacional, por conseguinte, das prioridades do processo legislativo, em detrimento do próprio Poder Legislativo. Matéria de competência privativa das duas Casas Legislativas (inciso IV do art. 51 e inciso XIII do art. 52, ambos da Constituição Federal).
- O alcance normativo do § 10 do art. 62, instituído com a Emenda Constitucional n. 32 de 2001, foi definido no julgamento das ADI 2.984 e ADI 3.964, precedentes judiciais a serem observados no processo decisório, uma vez que não se verificam hipóteses que justifiquem sua revogação.
- Qualquer solução jurídica a ser dada na atividade interpretativa do art. 62 da Constituição Federal deve ser restritiva, como forma de assegurar a funcionalidade das instituições e da democracia. Nesse contexto, imperioso assinalar o papel da medida provisória como técnica normativa residual que está à serviço do Poder Executivo, para atuações legiferantes excepcionais, marcadas pela urgência e relevância, uma vez que não faz parte do núcleo funcional desse Poder a atividade legislativa.
- É vedada reedição de medida provisória que tenha sido revogada, perdido sua eficácia ou rejeitada pelo Presidente da República na mesma sessão legislativa. Interpretação do §10 do art. 62 da Constituição Federal.
- Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente para declarar a inconstitucionalidade da Lei n. 13.502, de 1º de novembro de 2017, resultado da conversão da Medida Provisória n. 782/2017.”
Na decisão – que por analogia também vale para a situação de revogação, já que esta antecede a reedição – o STF firmou a tese a seguir resumida:“É inconstitucional medida provisória ou lei decorrente de conversão de medida provisória cujo conteúdo normativo caracterize a reedição, na mesma sessão legislativa, de medida provisória anterior rejeitada, de eficácia exaurida por decurso do prazo ou que ainda não tenha sido apreciada pelo Congresso Nacional dentro do prazo estabelecido pela Constituição Federal”.
Compulsados os conteúdos do voto da relatora, a ementa da decisão e a tese adotada, mostra-se mais do que evidente que o que importa é a sessão legislativa em que os motivos determinantes da vedação de reedição acontecerem. Para os fins da vedação, é irrelevante que a edição original da MPV tenha sido editada em sessão legislativa anterior àquela em que se encerrar, por qualquer motivo, a sua vigência.
Assim, a medida provisória poderá ter sido editada numa sessão legislativa e rejeitada, ou perdido a eficácia, sem ser apreciada, ou mesmo revogada em sessão legislativa posterior à da sua edição. E é esse, portanto, o momento em que se aperfeiçoa (completa) a vedação da reedição.
Dizendo de outro modo, a decisão prevê quatro hipóteses:
1) não pode ser reeditada na mesma sessão legislativa em que foi editada;
2) não pode ser reeditada na mesma sessão legislativa em que perdeu a eficácia (caducou);
3) não pode ser reeditada na mesma sessão legislativa em que foi rejeitada; e
4) não pode ser reeditada na mesma sessão legislativa em que foi revogada.
A revogação de medida provisória foi examinada em detalhes no julgamento da ADI 5.727. Reconhecendo a sua possibilidade, mas também o caráter de suspensão de eficácia da medida provisória primitiva, a Corte estabeleceu com clareza o entendimento de que: a) o conteúdo da Medida “revogada” não pode ser reeditado, nem mesmo parcialmente; b) para não ser configurada reedição, nova medida provisória deve tratar do tema com alteração significativa de seu conteúdo.de forma. Qualquer similaridade, ainda que envolvendo apenas parte do conteúdo primitivo, caracterizará a fraude à Constituição, e burla ao princípio da vedação de reedição.
Assim, pela interpretação do STF, que revela a preocupação da corte com a separação de poderes e a preservação da competência do Poder Legislativo, ignorar tais limitações configura usurpação da prerrogativa do Congresso.
Por isso mesmo, a corte fixou a regra de que “qualquer solução jurídica a ser dada na atividade interpretativa do art. 62 da Constituição Federal deve ser restritiva, como forma de assegurar a funcionalidade das instituições e da democracia”, ou seja, não se admite interpretação que amplie as liberdades conferidas ao chefe do Executivo na edição de medidas provisórias.
Portanto, não há dúvidas sobre a proibição nas três primeiras hipóteses, e com muito mais razão não pode haver dúvida sobre a quarta hipótese, inclusive porque a revogação é um ato que antecede a reedição e, portanto, na sequência, dentro da mesma sessão legislativa.
Logo, a reedição ou a edição de nova MP em caso de revogação da medida provisória primitiva, observada a identidade de conteúdos e objetivos, é tão ou mais inconstitucional do que nas demais hipóteses.
No caso da MPV 905, uma peça eivada de autoritarismo, e que cometeu o grosseiro erro de pretender abordar, simultaneamente, uma miríade de temas, sob o “guarda-chuva” da criação do Contrato Verde e Amarelo, mas promovendo verdadeiramente uma segunda “reforma trabalhista”, a sua não apreciação no prazo de 161 dias em que vigorou, evidenciou o juízo negativo por parte do Congresso Nacional, equivalente a sua rejeição tácita. Ela vigorou por prazo mais do que suficiente para que fosse aprovada, se mérito tivesse para tanto.
A sua revogação, no último dia do prazo, pretensamente orientada a buscar uma “brecha” por meio de interpretações criativas das decisões do STF, e aparentemente incentivada por manifestações de alguns parlamentares e do próprio Presidente do Senado Federal, revelou-se, ao final, um gesto desastrado, desesperado, de quem quer ser apenas “esperto”. E, como diz o ditado português, quando a esperteza é muita, ela vira bicho e engole o “esperto”.
Em conclusão, pode-se afirmar que a edição de nova MP com o mesmo conteúdo da MP revogada, ou de parte dele, é, além de fraude à decisão do STF, absolutamente inconstitucional, e, assim, insuscetível de ser negligenciada ou tolerada.
Caso venha, efetivamente, a ser editada nova medida provisória sobre a Carteira Verde Amarela, como anunciado pelo presidente Jair Bolsonaro – que, evidentemente, não foi alertado para as limitações a serem por ele observadas, logo ele que se intitula “a própria Constituição” –, ainda que com validade limitada ao período de calamidade pública da covid-19, o tema será, fatalmente, objeto de judicialização, por se configurar situação de grave risco à ordem democrática, ao Estado de Direito e, sobretudo, aos direitos dos trabalhadores.
* Antônio Augusto de Queiroz é jornalista, consultor e analista político, mestrando em Políticas Públicas e Governo na FGV-DF, diretor licenciado do Diap e sócio-diretor das empresas “Queiroz Assessoria em Relações Institucionais e Governamentais” e “Diálogo Institucional Assessoria e Análise de Políticas Públicas”. E-mail: toninho@diap.org.br
** Luiz Alberto dos Santos é Advogado, mestre em Administração, doutor em Ciências Sociais e consultor legislativo do Senado Federal. É professor da Ebape-FGV, do ILB e da Enap. Foi Subchefe de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais da Casa Civil da Presidência da República (2003-2014) E-mail: luiz.alb.santos@gmail.com
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