A Câmara dos Deputados anunciou que vai retomar a discussão sobre o PL 2630, de 2020, sobre a regulação das plataformas digitais. Nos últimos dias, um intenso debate tomou conta das redes sociais entre os que defendem e os que rejeitam a ideia de controlar os conteúdos que circulam na rede, na esteira do debate entre o STF e o Elon Musk.
São muitas opiniões, mas na verdade pouca gente sabe de fato o que está falando e entende exatamente o que está por trás dessa discussão.
A antropóloga Letícia Cesarino diz que um dos fenômenos da internet é que todo mundo virou especialista e que o termo autoridade se tornou extremamente relativizado no mundo online.
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Porém, opiniões à parte, nada substituiu um estudo sério sobre o assunto, de quem realmente leu, pesquisou, coletou e comparou dados para entender por que as redes sociais são acusadas de estarem fora da lei.
Para discutir se isso é verdade, eu corri atrás da Pietra Vaz, uma jovem escritora e experiente pesquisadora, que escreveu um livro sobre o também jovem tema da regulação da internet.
E a minha primeira questão foi: por que escrever um livro que discute o que é discutido na internet?
“Meu livro se chama “Irregulável mundo novo, a regulação de big techs em infosfera”, e nele eu trato da necessidade de regulação das grandes plataformas digitais, com base nas perspectivas da filosofia da informação e da ciência da legislação, que pode ser chamado de legística ou de jurisprudência. O livro tem origem na minha pesquisa de mestrado da Universidade Federal de Minas Gerais, e a ideia surgiu da constatação que nos utilizamos ferramentas das empresas gigantes de tecnologia todos os dias, mesmo sem perceber. Então nossos dados estão circulando, mas nós só conhecemos a sua superfície, elas são opacas, elas não são transparentes. Então cabe a gente falar sobre várias questões, como conseguir uma regulação que garanta a autonomia do ser humano sobre a tecnologia digital, a ciência da legislação atual é suficiente para cumprir com um desafio tão grande. E qual o papel da filosofia da informação junto ao legislador que vai enfrentar esse desafio da regulação. Essas são algumas das questões que eu trabalho ao longo do livro.”
Olhando de fora, regular as plataformas digitais para ser um desafio como outro qualquer, como discutir se vamos ou não aceitar jogos de azar no Brasil ou se vamos aprovar uma nova data no calendário comemorativo. No entanto, essas plataformas estão em todas as áreas e, além disso, elas armazenam os nossos dados, da saúde do SUS até os e-mails das nossas universidades federais, num processo lento de ocupação dos mais diversos setores da economia. Ou seja, a isso chamamos plataformização. A pergunta é: por que é importante discutir o que conteúdo que circula nas redes e porque ele é uma forma de poder?
Já somos mais de 5 bilhões de pessoas ao redor do mundo que estão penduradas nessas plataformas ou redes sociais, alimentando diariamente sua história e suas vidas com postagens e interação de todos os tipos. Eu arrisco dizer que o tempo dedicado online é maior do que o tempo que levamos para viver, dormir, comer. Nosso avatar digital, ou gêmeo digital, como diz Lúcia Santaella, pode ter mais vida do que nossa existência física, e essas camadas trazem implicações ainda imprevisíveis sobre a vida no planeta e as relações entre as pessoas, nos ensina Pietra Vaz.
“As redes sociais formam uma nova camada da realidade, em que as pessoas podem se expressar de diversas formas. Acontece que, já há alguns anos, tem ganhado espaço nas mídias uma série de fenômenos nocivos para a experiência em rede, como a desinformação, o negacionismo, a polarização e a radicalização, a vivência em bolhas, o extrativismo de dados e a utilização desses dados às margens das leis por parte das grandes plataformas, enfim, entre inúmeros outros problemas. Ao mesmo tempo, a internet nunca foi tão relevante, sendo essencial para relações de trabalho, consumo, lazer, saúde, gestão pública e privada de diversos negócios. Então ela abarca todo um plano de existência que já é essencial para a vida contemporânea. Então, talvez, justamente por essa essencialidade, exista uma discussão tão potente e radical quando a gente fala em regulação e moderação de plataformas, porque elas constituem um novo terreno em que a vida se desenrola; ela é a concretização do misto entre o analógico e o digital, e por isso virou também uma arena de disputa de narrativas e de discursos.”
Pegando como gancho essa disputa de discurso, onde é que mora a verdade, quando a gente contrapõe esses conceitos abstratos de liberdade de expressão e de censura? Como sair desse impasse em que as versões predominam mais do que os fatos em si, a chamada pós-verdade?
Eu acredito que existe uma âncora para gente navegar neste mar de incertezas e de dúvidas. Como saber o que é verdade e que não é verdade? Talvez, se a gente ajustar para o que é permitido e o que não é permitido, a interpretação fica mais fácil, não acha? Por exemplo, muito do que a gente vê na rede não tem nada a ver com liberdade de expressão. Tem a ver com crime. É crime mesmo, dos mais banais, como ofensa, até os mais intoleráveis, como apologia à violência ou atentado à vida.
Então, será que liberdade de expressão tem sido usado como um escudo para se ferir as leis brasileiras, e por isso a gente precisa discutir como regular essas mídias, com base nas nossas leis e nossos costumes, como nos ensina Pietra Vaz?
“A regulação das plataformas, especialmente das mídias sociais, é um desafio muito grande porque elas possuem natureza global. Como é que a gente vai criar uma solução que seja também global, que coexista com as várias incongruências que a gente tem de um regulamento para outro, de um ordenamento para outro? Porque, né, existem diversos ordenamentos diferentes ao redor do mundo.
Por exemplo, aqui no Brasil, a nossa perspectiva de liberdade de expressão, prevista constitucionalmente, tem limitações que em outros países podem não existir — não existem nos Estados Unidos, por exemplo — gerando um conflito, então, entre o que é permitido e o que é proibido aqui e lá fora. Então aqui no Brasil a nossa tolerância para o discurso de ódio é muito menor, mas isso não significa que exista censura, por isso o estabelecimento de limites à expressão na internet aos moldes do que a gente tem na vida analógica também não é censura, não implica essa existência. Então é muito importante que a gente não importe definições e conceitos de outros ordenamentos jurídicos por mera imposição dessas plataformas. É essencial que a gente tenha as nossas próprias leis como base para a nossa regulação, que seja soberana e cidadã.”
Como essas plataformas digitais são estrangeiras, a maior parte dos Estados Unidos, esse conceito de soberania atualmente também está um pouco relativo. O que parece inevitável é que essa regulação aconteça, caso contrário, as leis do país terão que ser alteradas para se adaptar às regras mais liberais da internet. A coexistência de uma mídia com salvo conduto para descumprir as leis brasileiras, como a calúnia, ofensa e difamação, que acontece por meio de desinformação e notícias falsas, não me parece ser um cenário compatível com a democracia.
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