Há poucos dias, neste mesmo espaço, o corregedor-geral do Ministério Público Federal, Eugênio Aragão, deu curso a um punhado de percepções suas: uma pretensa análise da rejeição da PEC 37/2011 como resultante do que afirma ser a apropriação (supõe-se que indevida) do movimento das ruas por um dos lados de um conflito corporativo (link para o texto de Aragão).
É preciso tornar público que os procuradores da República leram esses pontos de vista de seu corregedor-geral com, quando menos, assombro e consternação.
Dali reponta, por exemplo, que o Ministério Público “promove por vezes seleção do caso persecutório, dando preferência ao que lhe ofereça maior exposição midiática e ao que traduza maior risco para atores da política e da economia”. É uma declaração gravíssima, que ecoa acusações antigas contra o MP, apontando publicamente comportamento próprio ao abuso de poder e à prevaricação – ambos crimes, além de faltas disciplinares das mais graves –, em conduta que, caso constatada, certamente trai todos os valores éticos e princípios constitucionais que regem o Ministério Público brasileiro. Esta declaração difusa insulta o Ministério Público Federal, com o agravante de ver-se anunciada por quem tem solitariamente a responsabilidade de apurar e punir exatamente o tipo de comportamento que noticia.
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Em nova linha, o corregedor-geral do MPF afirma que “a competição entre as corporações dos delegados de polícia e do Ministério Público está direcionada a esses mesmos fatores: remuneração e vantagens e, claro, prestígio e poder, pois estes últimos favorecem a qualificação dos primeiros. A disputa pelo poder investigatório, presente na campanha da PEC 37, em última análise é parte dessa competição e não traduz nenhuma preocupação com a eficiência do Estado”.
Trata-se, com a devida vênia, de afirmação que prima pelo absurdo. Na verdade, se houve uma delimitação primária do embate público travado no que concerne à PEC 37, deu-se, isto sim, entre uma sub-corporação policial – a dos delegados de polícia – e todas e cada uma das instituições do Ministério Público brasileiro, e não das corporações que o compõem. A sociedade apenas notou isso, e o fez muito bem. Na verdade, até as paredes deram-se conta de que a PEC 37 significou o mais grave atentado contra o Ministério Público desde a Constituição de 1988, e, porque este atentado cometeu-se também contra a sociedade, nada mais natural que o clamor da rua incluísse o mais veemente repúdio à PEC 37: essa ofensa à cidadania não mereceu senão a justa e proporcional reação de uma sociedade esclarecida e madura no exercício da democracia, e que reconhece a inafastável parceria com o MP.
Contudo, a origem inteiramente corporativa por parte dos delegados de polícia foi detectada pelo próprio corregedor-geral do MPF, quando diz que “O projeto (PEC 37) foi elaborado por deputado que é delegado da Polícia Civil no Maranhão e atende à demanda corporativa dos delegados, que, desde a Assembleia Constituinte de 1986-1988, disputam espaço com a corporação do Ministério Público”.
De fato, com a aprovação da PEC 37 e a consequente privatividade da investigação criminal garantida constitucionalmente, obteriam delegados de polícia uma reserva de mercado constitucional que garantiria a perpetuação de sua categoria profissional como dirigente de um formato ineficiente e retrógrado de polícia e de investigação. Buscavam – e isto foi reconhecido por vários de seus dirigentes – o reforço de um modelo em que a polícia é bacharelesca e seus procedimentos judicialiformes, além da sujeição de várias outras instâncias investigativas e fiscais aos delegados de polícia.
Ora, não partiu do Ministério Público qualquer inciativa de suprimir atribuições da polícia; ao contrário, ele sempre defendeu a colaboração de todos os órgãos com poder de controle e investigação. A PEC 37 pugnava por uma reserva de mercado de atuação profissional, com uma exclusividade de atuação notavelmente retrógrada e inexistente na cena civilizada contemporânea, e que não ocorreria sem inevitável perda de qualidade na investigação; donde o estímulo à impunidade, na contramão do pretendido pelo país.
O Ministério Público exerce, nos termos da Constituição, o controle externo da atividade policial. Pois bem: inexiste hipótese de controle externo de qualquer tipo sem que o controlador possa investigar diretamente o controlado, e auditar e acompanhar suas atividades fins (ou seja, as investigações criminais), quando necessário. Cabe ao Ministério Público, nos termos da Constituição, a titularidade da ação penal pública. É, portanto, o destinatário primeiro das provas colhidas em investigação criminal, detendo – segundo a reiterada dicção jurisprudencial – autonomia para buscar, por si só, se possível e conveniente ao interesse público, estas provas.
A tal PEC 37, portanto, sob a ótica do Ministério Público – e assim também o compreendeu a sociedade – , piorava brutalmente o Estado brasileiro, e prejudicava a Justiça, a sociedade e o bem comum, beneficiando apenas uma sub-corporação do Executivo, e, certamente, os interessados em que o Estado seja e permaneça cada vez mais ineficiente em punir criminosos.
Como resultado destas posições e fatores, houve óbvia resistência e luta pela rejeição da PEC 37 por parte da instituição MP como um todo, e não apenas ou principalmente de suas corporações profissionais. Fizeram-no a ANPR e a Conamp com o melhor de seu esmero, na convicção de que sua aprovação seria uma desgraça para o cidadão brasileiro. Fizeram-no – incrível e ofensivo não perceber isso – por patriotismo, não por diletantismo sindical.
Sabe-o muito bem o corregedor-geral do MPF, a PEC 37 foi repudiada e ativamente combatida pelo procurador-geral da República, por todos os procuradores-gerais de Justiça dos estados e do Distrito Federal e pela unanimidade do Conselho Nacional do Ministério Público (incluindo, portanto, seus componentes oriundos do Judiciário, advocacia e cidadãos indicados pelas casas do Poder Legislativo). Não se percebeu que, neste momento singular de união de todo o Ministério Público, o que estava em causa transcendia nosso interesse corporativo? A sociedade, pelo visto, sim. Cidadania é esclarecimento.
No âmbito do MPF, reuniu-se, no dia 18 último, em Brasília, mediante autoconvocação, o Colégio dos Procuradores da República, colegiado mais abrangente da instituição, e igualmente bradou e decidiu, por unanimidade, pela rejeição da PEC 37. Nesta reunião, a primeira em mais de 13 anos, compôs a mesa o corregedor-geral Eugênio Aragão, além do procurador-geral da República, todos os coordenadores dos colegiados superiores do MPF e todos os candidatos e componentes da lista tríplice ao cargo de procurador-geral da República, absolutamente uníssonos no repúdio à PEC 37.
Uma tão intensa, abrangente e ostensiva reação institucional de todos os entes do MP brasileiro não pode ser taxada, com honestidade intelectual, de “corporativa”. Que benefício para a nação foi apresentado em favor da PEC? Nenhum. E mais: a insidiosa proposta não encontrou apoio em nenhuma outra corporação policial além dos delegados, tendo se manifestado contra ela os agentes de polícia, policiais rodoviários e todos os comandos de Polícia Militar do País. A imensa maioria dos policiais do Brasil, portanto, opôs-se resolutamente à vexatória PEC 37.
Nunca e em tempo algum houve campanha no MP brasileiro com a intensidade, engajamento e mobilização da que existiu contra a PEC 37, que não diminuía ou alterava seus salários.
Assim sendo, é uma falácia, uma miopia e um equívoco monumental o palpite de que toda essa ação em desfavor da PEC 37 teria como mote, por parte do MP, a defesa de vantagens corporativas. Se assim o fosse – admitindo-se apenas em favor da argumentação –, porque teria sido tão infinitamente mais intensa do que as próprias campanhas salariais?
As conjeturas ligeiras do artigo mencionado parecem rotular todos no MP que se esforçaram abnegadamente para esclarecer a população e o Congresso sobre a PEC 37 de meros caçadores de trocados e de vantagens, assim demonstrando um desconhecimento profundo da alma, do caráter e das ações de seus colegas de Ministério Público, num irrevogável divórcio da proeminência e liderança que deveria ter entre seus pares.
As linhas relacionadas ao povo, ao Congresso Nacional e à democracia, ao divisar uma pretensa apropriação desavisada das manifestações de rua pela causa do Ministério Público – e entrever, a partir daí, a consequência direta da rejeição da PEC 37 –, mostraram-se incrivelmente alheias à contemporaneidade.
Sem embargo, já não seria um truísmo lembrar que o povo – e particularmente as manifestações recentes e espontâneas – não têm dono e não é “apropriável”. Ao criticá-lo por falta de lideranças formais e pelo caráter desorganizado e espontâneo de suas manifestações, e retirar daí um desvalor ou a invalidez de suas manifestações, revela um discurso em que só se admite como válido, “esclarecido” e politicamente importante o movimento que vem já aprioristicamente controlado e dirigido por lideranças pretensamente iluminadas, que já escolheram, em nome do povo ignaro, seus objetivos e seu destino. Não poderia, o Ministério Público, secundar semelhante concepção, sob pena de cultuar prioritariamente o arcaico.
Com efeito, semelhante construção mental exilou-se irremediavelmente desta era de hiperinformação e das redes sociais da segunda década do século XXI. Cada manifestante que escolheu espontaneamente, entre outras bandeiras, a rejeição da PEC 37, assim o fez devidamente informado, e abraçou a causa por compreender o essencial: que ali se queria o monopólio de uma categoria profissional, com resoluta exclusão de outras que também investigam e combatem o crime, e que isso representaria acréscimo na impunidade, e mais corrupção. Simples e suficiente assim.
De sua vez, por maior que seja sua força, não foi o vento divino das manifestações cidadãs que rejeitou a PEC 37, mas sim a Câmara dos Deputados. A mediação é importante, e não um simples detalhe, e remete ao respeito pela democracia e pelas instituições.
Sintomático que o texto do corregedor-geral abstraia qualquer menção ao Congresso, aos parlamentares e aos deputados. A corporação do Ministério Público cooptou de alguma forma as massas indistintas, e daí a PEC foi derrubada, talvez em alguma forma de democracia direta? Não, definitivamente não. O papel do Legislativo foi de sensibilidade e protagonismo, a despeito de não ter merecido, ali, uma única sílaba.
E, bem ao inverso, o debate e votação da PEC 37 foi, dos dois lados, um combate pelos corações e mentes dos deputados, em um crescendo de informações, notas técnicas, debates e esclarecimentos. Os dois lados, portanto, e também o povo, respeitaram a soberania dos representantes eleitos, e apelaram a estes em uma campanha com intensidade poucas vezes vista neste país. A consulta eletrônica feita sobre o tema PEC 37 pela própria Câmara dos Deputados – com resultados obviamente repassados aos parlamentares – foi disparadamente a de maior votação no gênero, inciou-se antes das manifestações de rua, e resultou em rejeição da PEC 37 por mais de 85%. Desde a emenda das diretas já não se via o povo e o Congresso tão eletrizados, tão mobilizados em prol de uma discussão. O Facebook da ANPR, com a campanha contra a PEC 37, alcançou meio milhão de pessoas! Ali, apenas uma frase do presidente do STF contra a PEC alcançou 800 mil pessoas.
Ao votarem, portanto, os deputados levaram em conta, sim, a voz do povo, e nada há de incorreto ou censurável nisso, como incrivelmente parecem querer alguns. Trata-se, afinal, da casa do povo. Estranho seria o contrário, e imprevisível em resultados.
Porém, sabiam também tecnicamente o que faziam e exatamente do que estavam tratando. Receberam todos os subsídios para isso, e, ao sepultarem a PEC 37, rechaçaram conscientemente o corporativismo em favor do bem comum. Não é seriamente possível desconsiderar o voto esmagador da Câmara dos Deputados – 430 – e da unanimidade dos líderes.
Enfim, quanto à qualidade da investigação, foi justamente em seu nome que o MP do Brasil levantou-se contra o monopólio pretendido por uma categoria policial, e bradou pela rejeição da PEC 37. Em seu nome e em louvor à segurança jurídica, às garantias e à dignidade do investigado que ANPR, Conamp e CNPG propuseram às lideranças do Congresso, e em total respeito e colaboração à sua soberania, projeto de lei que regulará a investigação criminal do Brasil, no molde da orientação do Supremo Tribunal Federal e atendendo aos reclamos do próprio Congresso Nacional. Essa contribuição originou os Projetos de Lei de nº 5776/2013, da deputada Marina Sant’anna (PT-GO), nº 5.816/2013, do Deputado Artur Maia (PMDB-BA), nº 5.820/2013, do deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP) e nº 5.789/2013, do deputado Onyx Lorenzoni (DEM-RS). Trata-se do verdadeiro cerne da discussão que importa ao país: como conduzir uma investigação criminal, com regras e limites procedimentais bem definidos, em prol do aprimoramento do Estado e do respeito à cidadania.
O inverno da desinformação passou.
* Alexandre Camanho de Assis e José Robalinho Cavalcanti são, respectivamente, presidente e vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR).
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