* Texto escrito em parceria com José Mário Wanderley Gomes, professor da Universidade Católica de Pernambuco.
O orçamento público é um documento que aprova previamente as receitas e despesas do Estado, servindo como ferramenta para a gestão das finanças públicas e a execução de políticas públicas. Ele define tanto o momento em que efetivamente se iniciam as políticas quanto o resultado da prestação de serviços à população. Politicamente, o orçamento busca resolver necessidades e garantir o bom funcionamento dos serviços públicos, com o Poder Executivo responsável por elaborar o plano orçamentário e enviá-lo ao Legislativo para aprovação. No entanto, o Legislativo brasileiro tem desempenhado um papel cada vez mais ativo na definição do orçamento.
Comparado a outros países, o Brasil se destaca por ter um sistema único, caracterizado por possuir um Congresso com prerrogativas orçamentárias que podem ser consideradas excessivas. Em mais da metade dos países da OCDE, os parlamentos não podem emendar o Orçamento e rejeitar a proposta do Executivo equivale a um voto de desconfiança no governo. Em países como Austrália e Canadá, o Executivo gerencia o orçamento, enquanto o Legislativo apenas supervisiona. Em nações que permitem emendas, como Itália e Espanha, essas representam menos de 1% das despesas, porcentagem distante dos 23% no Brasil. Em muitos países, a lei orçamentária abrange mais do que receitas e despesas, e as emendas se concentram em aspectos regulatórios. Na Alemanha, há uma forte cultura de responsabilidade fiscal, com os ministros precisando justificar suas propostas de políticas ao Parlamento. No México, e em muitos outros países, emendas que aumentam despesas são negociadas com o Executivo e não podem ser obrigatórias. Nesse sentido, diferente do que acontece no Brasil, nenhum desses países tem uma cota obrigatória para emendas parlamentares e alterar o orçamento envolve custos políticos nesses contextos.
O novo arranjo desenhado em torno do manejo do orçamento tem impactado diretamente nas políticas públicas. Em estudo divulgado recentemente, pesquisadores do IEPS analisam a execução orçamentária das emendas parlamentares destinadas às políticas de saúde nos últimos anos. De 2016 a 2023, o valor das emendas destinadas à saúde cresceu mais de quatro vezes, ou seja, passou de R$ 5,7 bilhões para R$ 22,9 bilhões. Além disso, os dados da pesquisa mostram que, considerando as despesas não obrigatórias (ou discricionárias), o Congresso teve mais poder de influência que o próprio Ministério da Saúde no direcionamento de recursos para áreas importantes na assistência à saúde como são a Atenção Básica e a Atenção Especializada. Esses dados corroboram com a afirmação de que o poder do parlamento sobre o orçamento brasileiro vem aumentando consideravelmente e tem gerado distorções no processo de políticas públicas.
Além das distorções já mencionadas, a ampliação da atuação do Parlamento na alocação do orçamento pode comprometer a transparência da destinação do dinheiro público. Para enfrentar essa questão, em 8 de agosto, o Ministro Flávio Dino suspendeu o pagamento das emendas pix (e do orçamento secreto em geral) em decisão monocrática, até que Executivo e Legislativo chegassem a um acordo sobre o assunto, no que foi referendado pelo plenário do STF dias depois. Esse fato ampliou as tensões entre Suprema Corte e Congresso Nacional.
Para mediar o conflito estabelecido e no cumprimento da referida decisão judicial, em reunião entre os Presidentes do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e do Supremo Tribunal Federal (STF), o Ministro da Casa Civil, o Advogado-Geral da União e o Procurador-Geral da República, realizada na Presidência do Supremo Tribunal Federal, em 20 de agosto de 2024, foi firmado o compromisso de que as emendas parlamentares deverão respeitar critérios de transparência, rastreabilidade e correção. Nesse sentido, ficou acordado que Executivo e Legislativo ajustarão o tema da vinculação das emendas parlamentares à receita corrente líquida. Dessa forma, evitaria-se que as emendas cresçam em proporção superior ao aumento do total das despesas discricionárias.
Trata-se de uma peculiar situação instaurada pelo Supremo Tribunal Federal. Não há previsão institucional, em matéria de conflitos sobre a constitucionalidade de leis ou de atos normativos, para a conciliação. Por exemplo, uma lei supostamente inconstitucional não deixaria de ser inconstitucional pelo simples fato dos agentes políticos envolvidos assumirem compromissos quanto à edição de norma futura com outros termos. E como seria a efetivação (enforcement) destes acordos caso um dos agentes resolvesse simplesmente descumprir e manter o status quo? É um risco institucional grave e não completamente enfrentado pelo suposto mediador desta crise. O STF sustenta a crença de que os acordos serão cumpridos. Mas, na realidade, não se sabe qual será a receptividade desse acordo entre os parlamentares que aprovaram o referido rito e se beneficiam, de alguma forma, dessas emendas.
Em 2024, a ingerência do Legislativo em questões orçamentárias é um fato. Nesse sentido, é preciso defender a necessidade de responsabilização dos legisladores pelas decisões tomadas com relação ao orçamento e por suas consequências, para o bem das políticas públicas, da sociedade e da democracia. Esse é um debate que precisa ser enfrentado amplamente dentro do Congresso Nacional. Na contramão das manchetes, parece que a crise ainda não foi superada.
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