Há uma deliciosa crônica de Luís Fernando Veríssimo que há alguns anos explica os reais motivos de situações como a insólita briga de poder que ocorre no Congresso Nacional, tendo como principal protagonista o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL).
A crônica, “O jogo”, conta a história de dois meninos que disputavam uma partida de bola de gude. Um tinha absoluta convicção de que a sua bolinha tinha tocado na bolinha do outro. “Nicou!”, ele gritava. Já o outro estava cem por cento seguro de que não, as bolinhas não tinham se tocado. “Não nicou!”. A discussão virou briga, rolaram aos socos no chão, tiveram que ser separados por suas mães. Iniciou-se aí uma rivalidade para toda a vida.
No ginásio, um foi o primeiro da turma num ano. O outro foi o primeiro no ano seguinte. Cada um se matriculou em um cursinho que brigava na cidade sobre qual dos dois tinha feito o melhor vestibular. Um casou-se com a terceira maior fortuna do país. O outro com a segunda maior fortuna. Então, um construiu o maior edifício da cidade e batizou-o de “Nico”. O outro fez um arranha-céu ainda maior que batizou de “Nonico”.
Poderíamos bem chamar o “Blocão” formado por MDB, PSD, Podemos, Republicanos e PSC, com seus 142 deputados, de “Nico”. E o “Superbloco” criado agora com PP, União Brasil, Patriota, PSB, PDT, Solidariedade, Avante e a federação PSDB/Cidadania, com seus 175 deputados, de “Nonico”.
Tudo começa na disputa sobre o rito de tramitação das Medidas Provisórias. Arthur Lira defendendo a manutenção do formato que se acertou durante a pandemia de covid-19, quando a MP primeiro tramitava na Câmara e depois era entregue ao Senado. “Nicou!”, grita Arthur Lira. E o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), defendendo o retorno do rito previsto na Constituição, que estabelece a criação de comissões mistas para analisar as MPs. “Não nicou!”, assegura Pacheco.
No fundo, como na disputa de bolinhas de gude dos dois meninos, o que está em jogo é a vontade que prevalece. E tudo o mais que está envolvido a partir disso. O rito defendido por Lira estabelece para a Câmara e, consequentemente, para ele a primazia da definição do rumo das Medidas Provisórias, que são o principal instrumento legislativo de que dispõe o governo. Lira, assim, negocia, estabelece o ritmo e o formato que quer para o texto e o entrega para o Senado aos 45 minutos do segundo tempo, sabedor de que o Senado, nessa situação, fica com pouca margem para fazer outra coisa que não seja ratificar o que fez a Câmara, sob o risco de ver a medida que interessa ao governo caducar e perder validade.
Arthur Lira perdeu, por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), o formato do orçamento secreto, mas não perdeu a chave do cofre. Segue com a primazia de discutir a determinação das verbas orçamentárias. E, no fundo, tudo passa pela mesma negociação.
Como contamos aqui, o bloco “Nico” começou a ser costurado quando o governo passou a perceber que Arthur Lira tinha amealhado poder demais e de alguma forma precisava ser contido. A ideia surgiu após uma conversa do ministro de Relações Institucionais da Presidência, Alexandre Padilha, com o líder da Maioria no Senado, Renan Calheiros (MDB-AL), adversário de Lira. O “Blocão” foi articulado em absoluto silêncio. Os líderes envolvidos foram orientados a não comentar as negociações nem em conversas de WhatsApp, para que nada vazasse. O bloco “Nico” pegou Lira de surpresa.
Que articulou, então, o bloco “Nonico” para não ficar para trás. Com ele, volta a ter a primazia do poder na Câmara.
No fundo, até os pombos que frequentam o pombal criado por dona Iolanda, mulher do ex-presidente e general Costa e Silva, na Praça dos Três Poderes, sabem que, no fundo, nem o bloco “Nico” nem o bloco “Nonico” têm qualquer tipo de unidade ideológica. Nenhum dos dois blocos votaria juntos sequer um projeto que visasse a manutenção da Lei da Gravidade.
O que, no fundo, está em jogo é a manutenção dos mecanismos de poder do Legislativo. Que são todos definidos de forma proporcional. A maior bancada define em tese quem sucederá Arthur Lira no comando da Câmara ao final do seu mandato. Define – e isso talvez seja até mais importante – quem será o próximo relator do Orçamento.
Porque, no fim, é aquele que comanda a maior bancada que define quem dá a palavra final nessa briga. É quem, afinal, decide se “nicou” ou “não nicou”.
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