Era quase meia-noite de quarta-feira quando o líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), desistiu de brigar. Depois de dois dias tensos, a Medida Provisória da reestruturação do governo acabara de ser aprovada, com alterações importantes no desenho proposto pelo presidente Lula. Sem maioria na Casa, o governo, em cinco meses, não negociou e tornou-se refém do jogo de poder comandado por Arthur Lira. Para que a MP fosse ao menos votada, ainda que desfigurada, teve de liberar R$ 1,7 bilhão em emendas (em um só dia) e prometer acelerar nomeações de segundo e terceiro escalões emperradas na Casa Civil.
Admitindo cansaço e “consciência” dos problemas na articulação política, Guimarães anunciou que o Planalto concordava em manter a Funasa no organograma federal. A ideia de extinguir o órgão esbarrou em forte reação dos parlamentares. A Funasa é só um detalhe na relação do Executivo com o Congresso, que, no mínimo, está disfuncional. A MP passou com folga, mas Lula pagou um preço e nada garante que na próxima a vitória não cobrará mais caro — sobretudo em capital político. “Agora, o governo vai andar com suas pernas”, disse Arthur Lira.
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Antes da votação, Lira afirmava haver uma “insatisfação generalizada” da Câmara com o governo. A queixa pode ser traduzida no desejo de ver Lula fazer uma precoce reforma ministerial para contemplar aliados do presidente da Câmara, na cobrança de pressa para liberar emendas orçamentárias ou ainda numa distribuição de cargos. Mas vai além. Lira insiste na divisão do poder sobre o orçamento federal entre Lula e o Congresso — no caso, ele. Isso, naturalmente, teria impacto sobre toda a agenda política. A votação do marco temporal para a demarcação de terras indígenas é um exemplo, assim como a rejeição do decreto que alterava a legislação sobre saneamento. Lira pretende avançar num modelo semipresidencialista iniciado por Michel Temer e aprimorado por Jair Bolsonaro com o orçamento secreto. O governo, no entanto, é outro, e Lula, aparentemente, não pretende entregar muito mais do que já ofereceu.
Petistas próximos ao presidente enfatizam essa diferença. Dizem que Lula não fará mudanças no Ministério com a “faca no pescoço” e que o Congresso terá de se habituar a um novo regime na distribuição de verbas. O Executivo quer evitar a pulverização de recursos característica do orçamento secreto e ter domínio sobre as políticas públicas com verbas federais. Se acusavam a “chantagem” do Centrão de Lira, porém, reconheciam a falta de competência dos articuladores do governo, especialmente no cumprimento de acordos fechados desde o final do ano passado para a aprovação da PEC da transição.
Esses acertos foram cobrados ontem por um dos principais porta-vozes de Lira, o líder do União Brasil, Elmar Nascimento (BA). “Aprendi quando cheguei a esta Casa pela primeira vez, tendo como referência pessoas como V. Excelência [dirigindo-se a Lira], que duas coisas têm que existir aqui: palavra e credibilidade. Palavra com força e liderança para assumir compromissos; e credibilidade para poder levá-los até o fim, aconteça o que acontecer, haja a interferência que houver.”
Esse será o tom do Legislativo com o governo. No entanto, como a política acontece além dos tapetes do Congresso e dos salões do Planalto, Arthur Lira amanheceu com a notícia de uma operação da Polícia Federal em Alagoas, numa investigação sobre desvios de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) no valor de R$ 8,1 bilhões, envolvendo empresas de aliados dele. O caso é antigo, e certamente a operação não foi decidida ontem. Mas tem potencial para turvar ainda mais as relações.
Em outro palco político, o Supremo, o ministro Dias Toffoli liberou para julgamento recurso de Lira, de fevereiro, contra denúncia oferecida pela PGR por corrupção passiva. Em 2020, a 1ª Turma formou maioria para tornar Lira réu. Toffoli pediu vista. Tinha até o dia 19 para devolver os autos, mas decidiu antecipar-se. O caso deve ser analisado na terça-feira, pela 1ª Turma. Ontem, também, o ministro André Mendonça suspendeu a ação penal movida por Lira contra seu arqui-inimigo, o senador Renan Calheiros (MDB-AL), acusando-o de crimes contra a honra. O caso estava na Justiça Federal do DF, mas Renan alegou que o foro adequado seria o STF.
Este capítulo da crise foi contornado. Outros virão. Um choque entre o presidente da República e o presidente da Câmara não é bom para ninguém. Por isso, é improvável que aconteça. Lula e Lira têm experiência suficiente para saber que a única saída é a negociação. Na política, o fim do mundo não existe.
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