Cláudio Versiani, de Nova York* |
Mas bem que o título desta coluna poderia ser: as mentiras da imprensa e os erros do governo. Fica ao gosto do freguês. Há dois anos o NY Times sofreu com o escândalo do repórter Jayson Blair, que inventou fatos, personagens e fabricou matérias inteiras. Em 1998 a revista New Republic passou pelo mesmo vexame. O repórter Stephen Glass também gostava de inventar umas histórias. Jayson Blair escreveu um livro que não fez muito sucesso. A história de Glass virou filme. Em 1980 o Washington Post publicou uma matéria sobre o garoto Jimmy, oito anos de idade e viciado em heroína. A matéria de Janet Cooke ganhou o prêmio Pulitzer. Mas Jimmy só existia na imaginação da repórter. O jornal foi obrigado a devolver o prêmio. Mais uma vez a história virou filme. Publicidade
Os jornais perdem circulação e credibilidade. Os leitores se perguntam como a imprensa pode errar tanto. Por onde andará o controle de qualidade dos veículos de imprensa? Os blogs explodem na rede e explodem os jornalistas. Dan Rather, ex-âncora da CBS que o diga. O Wall Street Journal fatura mais com a edição eletrônica do que com o velho e tradicional jornal impresso. Os jovens cada vez lêem menos, e as empresas jornalísticas vão modificando o seu ramo de atividade. O NY Times, que fatura US$ 3 bilhões com seus negócios, recentemente comprou o portal about.com por mais de US$ 400 milhões. Publicidade
O mais novo erro da imprensa foi uma nota da revista Newsweek. Segundo a revista, o Corão, livro sagrado dos muçulmanos, havia sido profanado na prisão de Guantánamo, em Cuba. A nota afirmava que um exemplar do livro sagrado fora jogado dentro de um vaso sanitário. A história era baseada numa fonte anônima. Na semana seguinte, a revista se retratou e disse que a nota não era correta. Foi o suficiente para o governo iniciar uma ofensiva contra a Newsweek e o resto da “imprensa liberal”. Os jornalistas não se intimidaram. Eles continuaram escrevendo sobre o pesadelo em que se transformou o Iraque, onde as forças americanas não conseguem nem tomar conta da estrada que liga Bagdá ao aeroporto. O Afeganistão é coisa do passado. Após o episódio Newsweek, os jornais e revistas resolveram diminuir o uso da fonte anônima ou “off” (off the record) como se diz no Brasil. Mas, para felicidade dos jornalistas, apareceu a verdadeira identidade do “Garganta Profunda”, a fonte anônima que direcionou os jornalistas do Washington Post no caso Watergate. O debate sobre a validade do uso do “off” acabou aí. Não fosse o “Garganta Profunda”, Nixon não teria renunciado. PublicidadeUm governo que tenta processar verdadeiros jornalistas e usa jornalistas de mentirinha – às vezes, até credenciados na Casa Branca – não tem autoridade moral para falar de verdade. Um governo que gasta milhões de dólares para divulgar notícias favoráveis à sua administração nas rádios e televisões, sem avisar ao público que é pura propaganda, não pode ser considerado transparente. O governo Bush é pródigo em divulgar versões e insistir com elas até que virem verdade ou meia-verdade. Esse é o governo que deliberadamente mentiu sobre as armas de destruição em massa do Iraque e na ligação da Al-Qaeda com Saddam Hussein. Em maio passado, o jornal inglês Sunday Times publicou um relatório do governo britânico sobre a guerra do Iraque e suas razões. O relatório revela que Bush começou a pensar na guerra contra Saddam já em novembro de 2001. Em meados de 2002, Bush já tinha decidido invadir o Iraque e os planos para tal já estavam avançados. E ainda mais, que os fatos sobre o Iraque foram adaptados para justificar a invasão. Explicando melhor, o governo americano sabia que Saddam não tinha ligações com a Al-Qaeda e a capacidade do Iraque de ter as armas de destruição em massa era muito menor do que Líbia, Coréia do Norte ou Irã. Mas, insistindo nessa história, o governo americano conseguiu enganar muita gente, incluindo aí o Congresso, a opinião pública e até mesmo a imprensa, que, dois anos depois, teve de pedir desculpas aos leitores por ter comprado a versão do governo sem contestação. Dois episódios recentes demonstram que o governo não abandonou a tática de continuar mentindo. Pat Tillman era um astro do futebol americano, ganhava mais de US$ 3 milhões por ano. Depois de 11 de setembro, resolveu se alistar no exército e ajudar o país na luta contra o terrorismo. Tillman foi mandado primeiro pro Iraque e depois para o Afeganistão. Em abril de 2004, no meio de uma batalha, seus próprios colegas o mataram. Tillman foi vítima do chamado “fogo amigo”. Os soldados que mataram o herói queimaram seu uniforme e acobertaram o incidente. O exército os manteve calados. Tillman voltou para casa num caixão, reverenciado como herói. Recebeu uma medalha póstuma e apareceu na capa de vários jornais que venderam a incrível história do herói americano. No mês passado, o Washington Post revelou como o exército tratou a família do herói. A mãe disse que o fato de o filho ter sido morto pelos próprios companheiros foi uma tragédia. Mas o exército jamais poderia ter mentido para a família. O governo usou a morte de seu filho para fazer propaganda da guerra. Ela ficou ofendida quando, um pouco antes da eleição, Bush elogiou o herói num vídeo mostrado durante um jogo do time de Tillman. Episódio dois. Afeganistão de novo. A guerra que se recusa a acabar. O motorista de táxi conhecido apenas como Dilawar foi preso sob suspeita de ser terrorista. Na prisão de Bagram, foi torturado por vários dias e acabou morrendo porque seu franzino corpo não agüentou a pauleira. Dilawar chegou à prisão no dia 5 de dezembro de 2002, um dia depois da morte de outro detento, também devido a sessões e mais sessões de tortura. A história quase morreu porque o exército abafou o caso, porém um general ordenou uma nova investigação. O resultado confirmou as torturas. E, pior, os próprios interrogadores americanos achavam que o taxista era inocente. Torturaram só de brincadeira. Treinamento ou o quê? O primeiro episódio foi desvendado pelo Washington Post e o segundo pelo NY Times, não por acaso, os dois jornais mais importantes dos EUA e os mesmos dois que sofreram nas mãos dos repórteres inventivos. A imprensa americana tem uma impressionante tradição investigativa. Na semana que passou o exército foi obrigado a admitir pelo menos cinco casos de profanação do Corão, alguns inadvertidos, segundo os militares. Quanto à tortura deixa pra lá. Mas a imprensa e alguns militares se recusam a largar o osso. O governo Bush não deve ter vida fácil enquanto a guerra persistir. 500 anos antes de Cristo, Ésquilo, dramaturgo grego, ensinava: “Numa guerra, a primeira vítima é a verdade”. Desconfia-se que Bush tenha preferência por uma outra frase atribuída a Lênin: “Uma mentira repetida muitas vezes acaba virando a verdade”. Mas mentira tem perna curta, diz a sabedoria popular. |
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