Os setores mais conservadores da sociedade, quando tentam justificar os anos de chumbo da ditadura militar, sempre repetem que havia uma guerra no país, que era necessária uma reação contra grupos extremistas que pretendiam instalar aqui uma ditadura comunista, de esquerda. De fato, é preciso concordar que havia, especialmente do fim da década de 1960 ao início da década de 1970, de fato um confronto de ideias extremistas, de um lado e de outro do espectro ideológico, que compôs o formato em que se instalou na América Latina – não apenas aqui – a Guerra Fria. Mas é preciso pontuar que tal confronto não justificaria mais de vinte anos de ditadura e boa parte dos abusos contra os direitos humanos que foram cometidos.
Primeiro, a opção mais extremista, pela luta armada pelo lado da esquerda, ocupa apenas uma parte menor de todo o período da ditadura, que vai do final da década de 1960 até 1976, talvez tendo como marco final a Chacina da Lapa, que dizimou a direção central do PCdoB. E a ditadura militar iniciou-se em 1964 e só foi terminar em 1985. Além disso, boa parte daqueles que foram torturados, assassinados ou desapareceram não estavam envolvidos com a luta armada. O PCB, por exemplo, sempre foi contra ela, o que não poupou seus líderes. A tal “guerra” também não justifica as mortes de Vladimir Herzog, Rubens Paiva, e outros.
Além disso, a tal “guerra”, se não justifica tudo, também tem um desfecho curioso: trata-se de um combate sem vencedor, em que ambos os lados, nas suas ideias, foram derrotados pela história. Os generais, com seus uniformes e rituais belicistas, foram o ranço final da trupe de ditadores de direita que se instalou no mundo desde a década de 1930 (Franco, Salazar, Pinochet, Mussolini, Hitler). Por outro lado, a juventude que optou pela luta armada encantou-se com os discursos de igualdade de outras ditaduras igualmente cruéis e igualmente farsantes, na União Soviética de Stálin, na China de Mao.
Os que venceram o confronto, de fato, foram aqueles que combateram a ditadura de direita não para instalar uma ditadura de esquerda, mas para restabelecer a democracia. Gente como Juscelino Kubitschek, Ulysses Guimarães. A única diferença entre os lados derrotados, no entanto, é que um deles parece ter amadurecido em suas ideias. Enquanto o outro continua a todo custo tentando se apegar a suas ideias esclerosadas. Ou alguém imagina que a presidenta Dilma Rousseff ainda pretende implantar uma ditadura de esquerda no Brasil? Há em alguma manifestação dela ou de qualquer outro antigo militante de esquerda que pegou em armas na década de 1960 e hoje está no poder alguma coisa parecida com as notas e manifestações patéticas que continuam fazendo muitos dos defensores do regime militar? O fato é que houve, da parte das correntes de esquerdas, uma revisão pública das crenças que marcaram suas ações nos anos de 1960 e 1970, o que não houve – nem esboço disso – do outro lado.
Ao se comportarem da forma como se comportam, os defensores do regime militar colaboram para que se mantenha no país uma página da história que na atual conjuntura posterior à Guerra Fria já não faz mais nenhum sentido. Agora, é essa turma conservadora que continua, como disse Caetano Veloso sobre os jovens de esquerda lá na década de 60, querendo combater, hoje, “o velhote inimigo que morreu ontem”. Espalham um ódio impressionante contra uma coisa que não mais existe. Mas conseguem, assim, evitar que o país, finalmente, vire a página daquele período.
Está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) a ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que pede uma revisão da Lei da Anistia. Tomara que, desta vez, os ministros do Supremo não vejam nesse pedido um aspecto revanchista, mas apenas a necessidade, repetindo outros países que também tiveram suas ditaduras militares, de que todos prestem suas contas com a história. Com a ajuda da Comissão da Verdade e da implantação da Lei de Acesso à Informação, para que se vire a página. Não para que haja vinganças pessoais. Mas para que a ditadura militar, finalmente, acabe de uma vez.
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