São totalmente inaceitáveis e intoleráveis rebeliões policiais colocando em risco a população, como a de Salvador. A punição deve ser exemplar e sem anistias. O caso dos bombeiros no Rio foi particular, específico e diferente da ação insana que assistimos em Salvador e que ameaça se alastrar às vésperas do Carnaval. Mas o governo precisa também assumir a responsabilidade pela demagogia eleitoreira, em 2010 e, depois, pela sua omissão e falta de proatividade.
Em dezembro de 2010, escrevi o blog que reproduzo abaixo falando sobre a crise das polícias e a PEC 300. Fiz depois disso várias advertências na tribuna da Câmara Federal. Infelizmente, o governo deixou a situação deteriorar-se com a batata quente na mão dos estados. A PEC 300, que nivela o piso salarial dos policiais com a PM de Brasília (R$ 4 mil), foi aprovada em primeira votação, em 2010, antes das eleições. Depois, tudo mudou frustrando as expectativas.
Por outro lado, o mero aumento de salários mantendo-se o duplo ou triplo emprego, aquelas famigeradas escalas de serviço, não atende à população que almeja uma polícia civil e militar de qualidade.
Crise é sinônimo de oportunidade, e o governo federal tem a possibilidade de lancetar o abcesso, criando um Fundo de Segurança para ajudar os estados a pagar uma aplicação, escalonada no tempo, da PEC 300 e acabar com o câncer do mal chamado “bico” policial, na verdade uma segunda ocupação remunerada que frequentemente paga mais que a profissão. Um soldado da PM que ganhe R$ 1.500,00 e trabalhe 20 dias por mês como segurança de supermercado, por R$ 100,00, tem uma remuneração extra-polícia de R$ 2.000,00 por mês. Sua ocupação primordial é a segurança privada.
Os policiais merecem salário digno para poder dedicar-se exclusivamente à segurança pública, ao treinamento e à elevação de seu padrão profissional. É chegada a hora de enfrentar o problema de forma corajosa e estratégica.
Vejam o que escrevi em dezembro de 2010:
Por uma polícia de tempo integral
Hoje um soldado da PM-RJ ganha entre salário e gratificações cerca de R$ 1.400,00, ou se for de UPP, R$ 1.600,00. Muito pouco para uma polícia de qualidade, e que só faz sentido no atual regime de escala de serviço que caracteriza uma polícia part time, trabalhando praticamente dois dias por semana. Venho defendendo que a efetiva implantação da dedicação exclusiva de policiais civis e militares à segurança pública é o nó górdio para melhorar a qualidade da polícia. Em teoria, essa exigência já existe, mas, na prática, são pouquíssimos os que não tenham uma segunda ocupação remunerada que quase sempre paga mais que a profissão de policial. Um PM que trabalhe 20 dias como segurança de supermercado estará ganhando cerca de R$ 2.000. Mais do que ganha nos dez dias por mês que trabalha para a polícia.
Os PMs tem uma escala de serviço de (supostamente) 24 horas de plantão por 48h de “folga”, no caso dos civis, 72h. Na suposta “folga”, são segurança de estabelecimento comercial, guarda-costas, motoristas de taxi e até (já conheci), corretores de imóveis. Um PM, muitas vezes, trabalha para o coronel comandante de seu batalhão que tem uma empresa de segurança. Na segunda feira, são superior e subordinado, na terça, empresário e empregado informal.
No caso dos policiais banda podre, envolvidos com o crime, esses dias de suposta “folga”, quando não estão sob o enquadramento e a rotina da instituição, são muito “úteis”, embora o “arreglo” possa acontecer durante os dias de serviço também. Não é a toa que mais de 70% das mortes de PMs se dão fora do serviço policial regular.
Para impor de fato a dedicação exclusiva, teria que haver um aumento de salário, que alguns policiais, que depuseram na Comissão de Segurança da CMRJ que presido, estimaram entre 100% e 150%, e não fica longe do disposto na PEC 300. Os estados não conseguem pagar isso e teria que haver um Fundo Nacional de Segurança para, como no caso dos professores, bancar a diferença. Parte disso poderia vir do FAT. Estou fazendo um estudo com André Urani para ver como isso pode ser financiado.
Se a PEC 300 ainda estiver em pauta na próxima legislatura, quando serei deputado federal, gostaria de contribuir para costurar um acordo com o governo, para vincular um aumento substancial – não precisa ser precisamente da forma disposta na PEC, temos que ver o lado fiscal da coisa – a imposição compulsória da dedicação exclusiva. Poderia haver um período de transição com os dois regimes e, ao final, a opção. O policial que quiser continuar policial então ficará com um salário compatível, mas proibido de exercer outra atividade, mesmo que mantenha um tipo de escala que certas missões policias exigem. Os outros dias teriam que ser dedicados à formação permanente, ao adestramento, etc…
O efetivo da PM quase triplicaria e teríamos um maior controle sobre eles. Quem preferir a segurança privada teria que se aposentar porque há uma contradição entre elas. A privada nutre-se da deficiência da pública. Além da dificuldade financeira há toda uma cultura policial secular a ser vencida, mas, se queremos algum dia ter uma polícia de qualidade, não há como fugir dessa questão. Com um regime part time, nunca teremos uma policia decente.
Não é uma panacéia, ainda teríamos que ter uma corregedoria verdadeiramente autônoma, eficaz e bem protegida para combater concentradamente o “arreglo”, o banditismo e os crimes violentos cometidos por policiais (penso que deveria ser separada da encarregada de questões disciplinares e crimes menos graves). De qualquer forma, parece-me uma condição sine qua non para começar o longo caminho de recuperar as polícias. É como se pode obter mais efetivo e mais qualidade para encarregar-se tanto do policiamento ostensivo das favelas e do asfalto – que deveria ser feito primordialmente a pé – quando da investigação e instrução judicial ambos muito precários no Rio de Janeiro e em outros estados, cada qual com seus problemas específicos e peculiaridades.
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