Artigo revisto a quatro mãos, mas escrito por Diogo Duarte de Parra, advogado e escritor, que mantém o blog www.chovendonapraia.blogspot.com, de literatura
Alguma coisa deve estar errada. Sinto um estranho incômodo quando leio, em todas as matérias que versam sobre a greve dos policiais militares baianos, nada além da óbvia correlação que se estabelece entre esse fato e a explosão de violência que se instalou no estado. Quando a crescente onda de roubos, saques e assassinatos na Bahia é vista e discutida apenas enquanto problema de segurança pública, alguma coisa está errada.
Claro, o problema da greve deve ser resolvido. Suscita reflexões próprias, como, por exemplo, se o movimento grevista não ultrapassou o razoável ao retirar do trabalho contingente significativo de policiais, ou se a própria greve não seria absolutamente ilegal, uma vez que se trata de um serviço público essencial. O Supremo Tribunal Federal, inclusive, já decidiu (1) no sentido de afastar o direito de greve em alguns casos. E o que dizer do sentimento que se instalará entre policiais e a população? Os números mais recentes, no momento em que escrevo, apontam 79 homicídios em Salvador, ao longo dos quase cinco dias de greve. Como evitar que aqueles não sejam vistos como culpados de alguma maneira?
Mas como disse, em que pesem as críticas que possam ser dirigidas ao movimento grevista, podendo ser até mesmo considerado ilegal, o que me espanta é que as discussões que se vêm tendo sobre o assunto se limitem unicamente à questão da segurança. Causa-me vertigem que tenhamos aceitado tranquilamente que, caso não nos sejam apontadas armas a todo o instante, disseminaremos a barbárie. Porque isso é o que tacitamente admitimos ao centrarmos nossas críticas na demonização dos policiais, que, como disse, ao que tudo indica, agiram mal e, por isso, deverão ser investigados e eventualmente punidos. Mas há mais coisas entre o céu e a terra do que supõe nossa imprensa.
A greve é a responsável direta pela ausência de repressão nas ruas, pela ausência de resposta à violência cometida, pela ausência do medo da punição. Isso é óbvio. Mas de quem é a responsabilidade pela violência cometida? De quem é a culpa pelos homens que empunharam armas e mataram 79 pessoas? Claro, a culpa sempre será também desses infelizes algozes, mas será que de ninguém mais?
O ser humano precisa se humanizar. E esse é um processo que exige o acesso à educação, cultura, saúde, alimentação, moradia, emprego. O que parece, com o exemplo baiano, é que, tristemente, já aceitamos ter como pressuposto que parcela de nossa população está mesmo privada desse processo de humanização e que só responde à violência estatal organizada, às polícias. Por que não nos perguntamos como vive a população baiana em Salvador e no restante do estado? Por que não indagamos a qualidade da educação, a disponibilização de equipamentos de cultura? Será que realmente abdicamos do processo de humanização que devemos buscar enquanto indivíduos e sociedade, e já dormimos tranquilos com a ideia de que para alguns existe apenas a força bruta?
(1) “Os servidores públicos são, seguramente, titulares do direito de greve. Essa é a regra. Ocorre, contudo, que entre os serviços públicos há alguns que a coesão social impõe sejam prestados plenamente, em sua totalidade. Atividades das quais dependam a manutenção da ordem pública e a segurança pública, a administração da Justiça – onde as carreiras de Estado, cujos membros exercem atividades indelegáveis, inclusive as de exação tributária – e a saúde pública não estão inseridos no elenco dos servidores alcançados por esse direito. Serviços públicos desenvolvidos por grupos armados: as atividades desenvolvidas pela polícia civil são análogas, para esse efeito, às dos militares, em relação aos quais a Constituição expressamente proíbe a greve (art. 142, § 3º, IV).” (Rcl 6.568, Rel. Min. Eros Grau, julgamento em 21-5-2009, Plenário, DJE de 25-9-2009.).
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