Raul era um jovem como tantos outros herdeiros dessa terra de Renato Russo. Sonhador, cheio de ideias, sonhos e planos. Mas as semelhanças páram aí. Raul era especial. Não o conheci, senão pelas suas atitudes. Raul fazia parte de um grupo seleto. Poucos são os que se dedicam a uma causa que não seja: ganhar dinheiro ou gastar dinheiro. Para ser exato, na Roda da Paz, esse grupo seleto nunca variou mais do que uma ou duas mãos contadas no dedo. Bicicletas há muitas, grupos de bicicletas têm de montão, mas os soldados da paz, aqueles que tocam o barco, que hasteiam a bandeira e correm para puxar o coro, esse era o Raul. Mais do que ocupado, era engajado. Mais do que sonhador, era realizador. Gente que faz… da bicicleta um estandarte da igualdade. Da justiça. Da lealdade. Do amor, do mais profundo amor à vida. Por isso, Raul se foi como um anjo. Os anjos não morrem, mas eles também não pertencem a esse mundo, certo? Um mundo em que muito poucos têm coragem de dedicar-se a uma causa, por amor à vida, e não ao dinheiro. E não nos parece nada justo que eles se vão tão cedo, porque, afinal, quem cuidou do Raul?.
Esse artigo é um depoimento em primeira pessoa. Não falo em nome da Rodas da Paz, mas falo com o sangue da organização que montei há 14 anos com outros gatos pingados, e que ainda corre nas minhas veias. Como “mãe de um filho que se emancipou”, recebi a notícia da morte de Raul como a de um filho. Raul fazia parte da Rodas da Paz, assim como Ana Júlia, Jonas, Renata, Joyce e alguns outros guerreiros e guerreiras. Uma ONG respeitada que colocou a bicicleta nas ruas e na agenda dos governos e que se faz com pouca gente. Mas quando um deles se vai, a ONG vai junto. Após 14 anos de campanha, dá uma tremenda sensação de impotência: era como se nem os padres, os médicos ou os jornalistas, pessoas que militam a paz, fossem respeitados nesta guerra que é o trânsito.
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É um soco na cara. Tipo vale tudo. Uma terra sem lei. Os limites ultrapassados. A ordem natural subvertida: quem salva, morre? Como assim? A Rodas da Paz nunca salvou ninguém. Ela ensina, sensibiliza, alerta, educa, conscientiza. Raul sabia disso tudo. Era consciente. Era anjo, tutor, era profeta da cultura da bicicleta. É assim, a vida em primeiro, em segundo, em terceiro. Essa é a regra.
Não precisaríamos de regras, de leis, de guardas ou de juízes se a vida fosse valorizada. Mas a máquina domina o homem,e a bicicleta se torna invisível. Assim como seus condutores, todos anjos invisíveis. Para os desavisados, quando o ciclista ocupa a pista, ele não está sendo arrojado ou maluco, ele está querendo ser visto. Apenas isso!!!
Não é hora de culpar ninguém, essa é a minha opinião. Mas, para nós, da Rodas da Paz, fica uma enorme pergunta: o que deu errado? O que dá errado quando os nossos símbolos são destruídos e vilipendiados, como os patrimônios históricos na Síria, como o perdão da comparação? A dor é mais profunda quando nossos símbolos são atingidos. A vulnerabilidade é maior, o medo mais devastador e a sensação de fracasso imobiliza. Assumir essa tristeza como uma tragédia é a obrigação da ONG que nasceu contra a banalidade da morte inútil e vulgarizada pelos discursos escapistas da responsabilidade social, sem aplicação prática alguma.
Afinal, nunca enfrentamos com seriedade a questão da velocidade nas ruas urbanas no DF, e isso é um crime anunciado contra o usuário de bicicleta. As faixas de pedestres empalidecem no marketing vazio do governo-cidadão. Onde estão os guardas nas ruas para multar quem usa celular ao dirigir? São milhares as ações que poderiam ter salvado a vida de tantos Rauls nestes 14 anos de campanha da Rodas da Paz. E nós juramos, nós tentamos todas elas, inclusive a via burocrática, das reuniões de gabinete até os protestos na ruas. Sem o discurso derrotista de que isso nunca vai mudar, porque nosso objetivo, como Rodas da Paz, é o nosso fim, assim que governos, sociedade, motoristas, ciclistas, todos estarão seguros em suas cidades, dentro ou fora de carros. Importa menos saber quem falhou e mais por que temos tão poucos voluntários diante de um trânsito tão violento, por que temos tão pouca fiscalização e punição, por que temos tão poucos ciclistas na rua e por que andar de bicicleta deixou de ser uma coisa lúdica e divertida há muito tempo.Ninguém aguenta ficar muito tempo no front de batalha de uma luta pela paz no trânsito, assim como todo soldado é sequelado após uma guerra.
Como numa corrida de revezamento, a gente passa o bastão para que outros possam repetir o discurso vilipendiado por quem já deveria fazer o dever de casa como dever de ofício, os governos, por exemplo. Porque não é de políticas que tratamos, mas é de vidas que conquistam nossos corações, que balançam a nossa bandeira da paz, que nos fazem acreditar que estamos avançando e que nosso sonho é possível, e que 14 anos de campanha honesta, corajosa, limpa e digna não foram em vão… até que essas vidas iluminadas, essas almas generosas… se vão…sem se despedir dos seus amigos mais queridos, parceiros de luta e cúmplices na alegria. Raul, das tragédias nascem os mártires, mas para nós você será sempre um anjo. Bike Anjo!
A Rodas da Paz não morre com você! Ao contrário, ela viverá para você, para honrar a sua linda passagem por este mundo que te viu sorrir.
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