Por 10 votos a 1, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou nesta quinta-feira (8) a constitucionalidade do decreto presidencial que regulamentou, em 2003, a demarcação de terras de comunidades quilombolas. Com a decisão, os ministros mantêm as chamadas regras de autodeterminação, que concedem à própria comunidade em questão o poder de determinar quem são os quilombolas e onde eles estão localizados, bem como o direito à posse das terras ocupadas à época da promulgação da Constituição de 1988.
A ação direta de inconstitucionalidade (Adin) que queria derrubar o decreto – e, consequentemente, o direito à permanência dos quilombolas em suas terras – foi ajuizada pelo ex-PFL (Partido da Frente Liberal), o atual DEM (Democratas), em 2004. Na Adin, a legenda apontou diversas inconstitucionalidades no Decreto 4.887/2003, publicado pelo então presidente Lula, entre elas justamente o critério da autoatribuição para identificar os remanescentes dos quilombos e a definição das terras atribuídas a essas comunidades.
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O texto regulamentou “o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”. Publicado em 20 de novembro de 2003, o documento foi subscrito à época pelos então ministros Gilberto Gil (Cultura), Miguel Rosseto (Desenvolvimento Agrário) e José Dirceu (Casa Civil), condenado na Operação Lava Jato.
PublicidadeUm pequeno grupo de remanescentes de quilombos acompanharam o julgamento no plenário da corte máxima.
Seis anos de julgamento
O julgamento do caso teve início em 2012, quando o relator da Adin, o hoje ministro aposentado do Supremo Cezar Peluso, votou pela total procedência da ação – ou seja, a favor da derrubada do decreto presidencial. Rosa Weber interrompeu a consecução da análise com um pedido de vista naquele ano. No retorno do julgamento, em março de 2015, a ministra devolveu seu voto-vista e abriu divergência de Peluso, votando pela constitucionalidade do decreto. Mas o ministro Dias Toffoli também pediu mais tempo para analisar o caso naquele ano, e só devolveu seu voto-vista em 2015. Em novembro, acompanhou a divergência aberta por Rosa Weber.
Também votaram pela improcedência integral da ação, além de Rosa Weber, os ministros Edson Fachin, Ricardo Lewandowski, Luiz Fux, Marco Aurélio, Celso de Mello e a presidente do STF, Cármen Lúcia. Já Luís Roberto Barroso rejeitou a ação com a ressalva de que, além das comunidades remanescentes fixadas em suas terras à época da Constituição de 1988, também têm direito à posse aquelas que foram desapossadas à força, sob “renitente esbulho” (vítimas de conflitos fundiários constantes).
Por sua vez ministros Toffoli e Gilmar Mendes acataram parcialmente a ação do PFL. Ambos deram interpretação constitucional ao decreto para assegurar o direito às terras também aos grupos que conseguirem comprovara a suspensão ou a perda da posse por força da ação criminosa de terceiros. Acompanhado integralmente por Gilmar, Toffoli incluiu em seu voto um marco temporal esclarecendo que somente deveriam ser titularizadas terras ocupadas por quilombolas na data da promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988), à exceção dos casos em que for comprovada, juridicamente, a suspensão ou perda da posse nas situações mencionadas. O entendimento minoritário foi derrubado pela maioria do plenário.
Em uma espécie de síntese do que foi decidido, a ministra Cármen Lúcia afastou as teses de inconstitucionalidade do decreto. Para a presidente do STF, o legislador constituinte, por ocasião da Carta Magna, conferiu aos quilombolas a propriedade definitiva das terras, bem como atribuiu ao Estado a responsabilidade pelo cumprimento da lei constitucional. Ainda segundo a magistrada, os critérios descritos no decreto para a definição das comunidades convergem com o texto constitucional.
Temor
Durante os quase seis anos de julgamento no STF, organizações não-governamentais receavam que o Supremo justamente impusesse um marco temporal para exigir, com base na promulgação da Constituição, a comprovação irrefutável de ocupação das propriedades. A fixação de uma data, temiam as ONGs, poderia inviabilizar a titulação de propriedade para algumas comunidades eventualmente expulsas de seus territórios de origem.
Na retomada do julgamento, com o voto do ministro Edson Fachin na tarde desta quinta-feira (8), ficou decidido pela maioria que as comunidades remanescentes de quilombos eram invisíveis ao ordenamento jurídico antes da promulgação da Constituição de 1988. Para Fachin, naquela ocasião os quilombolas eram apontados como invasores de terra. A reversão desse quadro, acrescentou Fachin, foi “uma vitória contra um evidente racismo incrustado em nossa sociedade e, assim, uma recomposição histórica”.
Luís Roberto Barroso, por sua vez, afastou a hipótese do PFL a respeito da ocorrência de fraude na concessão de títulos. “A ideia de que pudesse haver fraude é um pouco fantasiosa, porque era preciso enganar muita gente. Era preciso que a comunidade quilombola pudesse criar uma sociedade puramente imaginária”, votou o ministro.
No mesmo sentido, Rosa Weber disse que o reconhecimento ao direito de posse aos quilombolas é um resgate e histórico. “Tenho por inequívoco tratar-se de norma definidora de direito fundamental de grupo étnico-racial minoritário, dotada, portanto, de eficácia plena e aplicação imediata e, assim, exercitável o direito subjetivo nela assegurado, independentemente de qualquer integração legislativa”, pontuou a ministra.