Jacques Rancière, no seu “O espectador emancipado”, afirma: “o que o homem contempla no espetáculo é a atividade que lhe foi subtraída, é sua própria essência, que se tornou estranha, voltada contra ele”. Dentro do que o autor concebe como espetáculo (o teatro, as artes plásticas, a fotografia etc.) não há o futebol, mas avancemos por aí.
Com o show da Fifa não teremos propriamente uma crítica da sociedade, ou um despertar para os condicionantes que aniquilam as utopias, tampouco um renascimento da nossa essência esmagada.
Em verdade, a atividade que nos foi subtraída já está sendo reconquistada nas ruas, nos protestos, nas universidades, na efervescência da consciência de diversos grupos, na divisão social [e isto é bom] entre os que são contra e os que são a favor do evento desportivo. Há algo novo aí! A Copa do Mundo, chamada de “espetáculo”, subverteu a acepção inicialmente posta nesse texto, contribuindo para a retomada da essência brasileira justamente pela crítica/revolta ao próprio espetáculo.
Não escondo dados: são 12 estádios novos, inteiramente construídos e/ou totalmente reformados. E não é só: aeroportos ampliados, investimento em mobilidade urbana (com VLTs e BRTs), ampliação da transparência na execução orçamentária [nunca os gastos públicos foram tão vigiados, o que não tem evitado desperdícios, aditivos contratuais e, ao final, obras que custaram/custarão o dobro do valor inicialmente orçado], novas estradas e estações de metrô aqui e acolá. Custo: mais de R$ 25 bilhões.
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Tem-se afirmado que os gastos [se economizados] não resolveriam o problema da educação no Brasil, tampouco o da saúde, uma vez que representam menos de 10% do total gasto anualmente nos dois setores: R$ 280 bi, gasto anual em educação, e R$ 206 bi, gasto anual em saúde.
Pensando-me como sou, um cidadão, acredito não se tratar de um dinheiro que não resolveria “O” problema, mas da face apresentada por um país diante de tamanhos buracos sociais sem solução. Afinal, o que poderíamos dizer que RESOLVERIA as dificuldades do nosso país?
Penso mais nas prioridades que o Brasil denota possuir ao fritar tamanha grana [e absolutamente não é pouco] quando há rupturas sociais muito mais evidentes e, angustiadamente, clamando por solução.
É como estar passando desodorante num sovaco mal lavado. A questão não é o desodorante, mas uma boa água com sabão no ardido da axila. Por si só, o desodorante não resolveria o problema… a questão é a de quais são as prioridades.
Enfim, vai ter Copa, mas não sem luta, sem protesto, sem um novo florescer cidadão; o espetáculo está nas ruas, está na nova consciência que vai se formando, aos poucos.
Quando a televisão desligar, seremos nós de novo [como na última cena de O show de Truman], com nossas vidinhas, angústias e obrigações a cumprir e, quem sabe, alguma azia.
Palmas!
* César Gandhi é bacharel em Direito e funcionário público. Coordena, ao lado de Guilherme Brandão e Walter Brandão, o projeto Erga Omnes, uma iniciativa de caráter apartidário e voluntário que promove a educação política nas escolas públicas de ensino médio do Distrito Federal.
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