Saulo Said *
Na última quarta-feira (18) o Supremo Tribunal Federal revogou a decisão do Tribunal Superior Eleitoral que alterava o tamanho das bancadas dos estados na Câmara dos Deputados. O imbróglio foi instaurado em abril de 2013, quando o Tribunal Superior Eleitoral recalculou o tamanho da bancada dos estados com base no Censo do IBGE de 2010. De acordo com o novo cálculo, oito estados perderiam representantes (AL, ES, PE, PR, RJ, RS, PB e PI), enquanto cinco estados ganhariam representantes (AM, CE, MG, SC e PA). Essa discussão também afeta o total de deputados estaduais, que é atrelado por lei ao total de deputados federais dos estados.
A queda de braço entre o Congresso e o TSE teve início em novembro, quando as duas casas legislativas aprovaram um decreto derrubando a decisão do TSE. O tribunal, por sua vez, derrubaria a decisão do Congresso, alegando que somente uma lei complementar poderia alterar a regra do cálculo que estabelece o tamanho das bancadas. E mesmo que o Congresso viesse a aprovar uma lei complementar, alegam os juízes, esta configuraria uma nova lei eleitoral e só poderia valer em 2014 se aprovada até outubro de 2013.
Ao dar razão ao Congresso e derrubar a decisão do TSE, a Corte Suprema incorre em gravíssima inconstitucionalidade. O artigo 45 da Constituição, parágrafo primeiro, estabelece que a distribuição de cadeiras por estado será definida por lei complementar, mas já garante (de partida) a proporcionalidade, além do piso de oito e o teto de 70 deputados por estado (portanto, duas exceções à proporcionalidade). A Lei Complementar 78/1993 regulamenta o dispositivo constitucional e em seu art. 1º, parágrafo único, é bem claro ao dar ao TSE a competência para recalcular o tamanho das bancadas com base nos dados do IBGE. Essa também foi a interpretação do ministro Gilmar Mendes, que foi voto vencido no Supremo.
O equívoco maior é não entender o papel do TSE ao recalcular as bancadas. Quando o tribunal utiliza o censo para redefinir o número de deputados dos estados, ele não está criando uma nova norma, mas sim aplicando uma norma já existente (cumprindo seu dever constitucional). O total de deputados de cada estado não é congelado pela Constituição nem pela lei complementar. Ao contrário, a Constituição estabelece o piso, o teto e a proporcionalidade das bancadas em relação à população dos estados. Dito de outro modo, as únicas violações à proporcionalidade aceitas pela nossa legislação são o piso e o teto; ao ignorar solenemente os dados do IBGE, introduzimos uma terceira desproporcionalidade, sem respaldo legal.
Para ficar clara a desproporção, vamos citar alguns exemplos das novas distorções. De acordo com o IBGE, o estado do Amazonas possui uma população de 3.483.985 habitantes, enquanto o estado de Alagoas possui população de 3.120.494. Entretanto, se as bancadas não forem recalculadas, o Amazonas terá oito deputados enquanto Alagoas terá nove, apesar de este estado ter população menor que aquele. O estado do Pará possui 7.581.051 habitantes, enquanto o Maranhão possui 6.574.789. Mesmo com 1 milhão de habitantes a menos, o Maranhão terá 18 deputados, contra 17 do Pará. Cabe perguntar aos ministros do STF, que derrubaram a decisão do TSE, qual o respaldo legal para essa nova desproporção.
Assistimos, enfim, a um espetáculo de inconstitucionalidade de deputados e senadores, com o aval do STF. O Congresso poderia ter discutido a proporcionalidade, poderia ter discutido o piso e o teto constitucional que garante sobrerepresentação para pequenos estados e subrepresentação para outros (São Paulo teria cerca de 40 deputados a mais não fosse o teto). Alguns poderiam defender a tese de que o piso e o teto distorcem o principio de “uma cabeça, um voto”, tornando cidadãos de alguns estados mais poderosos do que os de outros. Poderia se alegar ainda que o piso e o teto são necessários para evitar que as populações dos pequenos estados não sejam sistematicamente vencidas em disputas federativas contras os estados mais populosos. Com efeito, tal discussão seria muito útil e os argumentos citados são apenas ilustrativos. Entretanto, toda essa discussão foi negligenciada por nossos legisladores. O tema surge apenas agora não pela defesa deste ou daquele princípio, mas sim pelo interesse de políticos de estados que perderam representantes.
PS: para qualificar a discussão sobre a proporcionalidade das bancadas dos estados, recomendamos o artigo “As distorções na representação dos estados na Câmara dos Deputados brasileira”, do professor Jairo Nicolau.
* Saulo Maia Said é historiador pela UnB e mestre em Ciência Política pelo Iesp-UERJ.
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