A independência editorial do Congresso em Foco e o pluralismo com que abrimos espaço para os mais diversos pontos de vista não exime o site de ter opinião sobre temas que consideramos caros ao aprimoramento da democracia e à busca de um país mais justo. Daí, por exemplo, o fato de termos coberto nossa página inicial de preto, na Semana da Independência, em sinal de luto pelos escândalos de corrupção que macularam o governo Lula e em alerta contra os rumos da investigação em andamento no Congresso.
O referendo do próximo domingo é outra ocasião em que nos sentimos impelidos a expressar nosso pensamento. No caso, pelo voto “sim” à proibição ao comércio de armas e munições. Três argumentos fundamentais, dentre vários outros que poderiam ser invocados, embasam essa posição.
Em primeiro lugar, ao contrário do que sugerem versões absolutamente falsas difundidas por alguns adeptos do “não”, a experiência internacional mostra com clareza que as nações com menos armas em circulação ostentam as menores taxas de mortes por armas de fogo.
Em muitas delas (Japão, Reino Unido, Canadá, Austrália), a venda de armas é vedada. Em outras, como a Suíça, a comercialização é permitida, mas a população não tem o hábito de se armar para defesa pessoal. Há ainda aquelas, como a Colômbia, em que os índices de homicídios permanecem altos, mas caíram significativamente desde a adoção de restrições legais à comercialização de armas de fogo.
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O contrário também é verdade: há mais homicídios onde há mais armas. Nos Estados Unidos, a maioria dos estados permite o comércio e as mortes por armas de fogo somam perto de 30 mil por ano. Tais números também são elevados na Jamaica, na qual a proibição foi instituída em lei, mas não foi capaz de deter o trânsito ilegal de armas.
É verdade que a eventual vitória do “sim” no referendo não garante a diminuição, por si só, das armas em circulação. É preciso que as autoridades cumpram o seu papel de reprimir o uso das armas ilegais. Mas será um passo importante para, no mínimo, reduzir as mortes acidentais, tão comuns no país. Vale lembrar aos céticos que o recolhimento de armas entregues voluntariamente, após a entrada em vigor do Estatuto do Desarmamento, contribuiu para algo inédito nos últimos 13 anos: a queda, em 8,2%, do número de óbitos por arma de fogo. Preservou-se a vida de 3.234 brasileiros.
O segundo argumento tem a ver com o tipo de sociedade que cada um deseja. Para nós, a garantia da segurança pública deve ser uma função indelegável do Estado, como ocorre nas sociedades mais organizadas e democráticas. Se o poder público não desempenha suas atribuições a contento, como é fato no Brasil, cabe à população exercer seu poder de pressão para que isso ocorra. É uma absoluta deformação imaginar que o enfrentamento da violência é tarefa dos “cidadãos de bem”, aos quais a lei deveria assegurar livre acesso a armas de fogo.
Não procede a suposição de que, sendo incapaz o poder público de dar conta de suas obrigações, a população estaria mais qualificada para se defender, à bala, dos assassinos. Vários estudos demonstram que o risco de morte aumenta quando o cidadão tenta usar alguma arma como autodefesa. Também é falsa a idéia de que todos têm direito a possuir uma arma. Que direito é esse? Direito a aumentar a insegurança coletiva?
Vencendo o “sim”, esse direito continuará assegurado apenas a quem lhe faz jus. Poderão ter acesso a armas e munições quem realmente precisa delas, em razão da atividade profissional ou de ameaças à sua integridade física. A lista é ampla. Enquadram-se nessa situação: integrantes das Forças Armadas, policiais, agentes de serviços de inteligência, funcionários de empresas de segurança privada ou de transporte de valores, colecionadores autorizados, atiradores esportivos ou mesmo fazendeiros e trabalhadores rurais que precisem de armas para caçar ou para defesa pessoal. Assim, não se pode alegar que a proibição do comércio representaria abuso do direito de autodefesa.
Além da experiência mundial e da necessidade de se evitar a consolidação de uma espécie de faroeste caboclo, recomenda o voto “sim” a inegável constatação de que as armas legais são fartamente usadas pelos bandidos. Das armas que a polícia do Rio de Janeiro apreendeu desde 1999, nada menos que 72% haviam sido adquiridas legalmente. Essa, também, é a origem da maior parte das armas apreendidas nos demais estados. Mais uma vez, os adeptos do “não” distorcem as coisas ao afirmarem que a nova vedação desarmaria os cidadãos, facilitando a vida dos criminosos.
Merecem reparo, aliás, certas deturpações feitas à exaustão por alguns defensores da campanha pró-comércio de armas. Seria cansativo relacionar aqui todas elas. Pelo menos uma, porém, exige menção: a associação do referendo a um suposto plano destinado primeiro a desarmar a população e, depois, a instituir um Estado totalitário.
A suspeita foi lançada de forma tácita pela revista Veja e de maneira explícita por mensagens que circulam na internet, incluindo às vezes uma fraude: decálogo atribuído a Lenin, em que ele prega o desarmamento de civis. O documento foi forjado pela organização norte-americana de extrema-direita National Riffle Association, a NFA.
O pressuposto dessa suspeita é, em todos os aspectos, absurdo: o governo Lula pretenderia aprovar o “sim” para abrir caminho à implantação de uma ditadura de inspiração comunista. Nem haveria base social e política para legitimar tal plano nem o atual governo esboça qualquer afinidade com teses marxistas. Ao contrário. Na economia e na política, ele anda de mãos dadas com o mais absoluto conservadorismo, do qual se tornou refém.
Isoladamente, a proibição da venda de armas e munições não vai trazer os índices de criminalidade para níveis toleráveis. Isso dependerá de outras ações, como o aumento da eficiência das polícias e da Justiça e a redução das brutais desigualdades sociais do país. Mas poderá contribuir para tirar do Brasil um vergonhoso título: o de campeão mundial em mortes por armas de fogo. Somente entre 1979 e 2003, mais de meio milhão de brasileiros – sobretudo, pobres e negros – morreram dessa forma.
Compreende-se a desconfiança de grande parte dos eleitores em relação a uma bandeira que, embora encampada por um vasto conjunto de forças sociais (entre elas, os principais líderes da oposição), foi endossada por um governo desmoralizado pela crise do mensalão. Compreensível, igualmente, é o pânico coletivo diante da violência. Nada disso, no entanto, justifica a perda de oportunidade de dar um passo adiante na busca de uma sociedade em que seus cidadãos convivam pacificamente.
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