*Por Edjalma Borges
Os principais registros da pré-história americana no Brasil estão ameaçados por causa da pandemia da covid-19. O Parque Nacional Serra da Capivara, que abriga o maior sítio arqueológico do país e possui inscrições rupestres milenares, sofre com a escassez de recursos, que coloca em risco a conservação dos sítios pré-históricos. Uma situação preocupante e que acontece exatamente quando se completam 50 anos do trabalho da arqueóloga Niède Guidon, que foi a responsável por tornar o parque Patrimônio Cultural da Humanidade e referência em todo o mundo.
Aos 87 anos, Guidon completa em 2020, meio século de dedicação a tudo que existe hoje no Parque Nacional Serra da Capivara. A dedicação da cientista à região começou em 1970, quando a jovem pesquisadora paulista que trabalhava como professora na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais de Paris, na França, decidiu estudar a fundo a ocupação humana no interior do Piauí.
Seu empenho em meio à caatinga e a escassez de condições mínimas superou todos os obstáculos. Como resultado de seu trabalho, o parque nacional foi criado, ao mesmo tempo em que emprego e renda foram gerados para os sertanejos. Em suas pesquisas, Niéde Guidon aponta vestígios que podem ultrapassar os 50 mil anos da presença humana na Serra da Capivara.
Além das suas valiosas descobertas que despertaram o interesse da sociedade científica mundial, Niède catalogou mais de mil sítios arqueológicos e investiu na formação de novos arqueólogos que atuam na região – um legado que será referenciado pelo mundo.
Mas a escassez de recursos não vem de agora. Com todo seu esforço, a arqueóloga conseguiu manter vivos e em funcionamento até os dias de hoje o Museu do Homem Americano e o Museu da Natureza, administrados pela Fundação Museu do Homem Americano (Fumdham) e pelo Instituto Chico Mendes (ICMBio). Eles são resultado das pesquisas e descobertas de Guidon.
A Fumdham já sofria com dificuldades financeiras e, com a pandemia, demitiu metade dos funcionários do parque e do Museu da Natureza. Dos 49 funcionários, 25 foram desligados. O setor responsável pela manutenção dos desenhos milenares foi exatamente o mais impactado. No caso do Museu, só ficaram 4 servidores.
A “vida” dos registros milenares depende da manutenção que vai desde a limpeza dos painéis de pintura até a vedação das infiltrações para não danificar os paredões que servem de “telas” e que guardam as inscrições históricas. Também são necessárias as podas de árvores, que impedem o avanço dos galhos até as pinturas e a manutenção das trilhas e das passarelas. Mas, depois da dispensa de parte dos servidores, apenas os serviços essenciais, como vigilância, a prevenção e combate a incêndios, foram mantidos.
Essa falta de cuidados com o patrimônio histórico pode resultar na perda de registros que ajudaram a mudar a percepção sobre os primeiros habitantes do continente americano.
Apesar das dificuldades financeiras, o Parque Nacional Serra da Capivara segue chamando a atenção por tudo que representa e por suas belezas naturais. Antes da pandemia, em 2019, bateu o recorde de visitas das últimas duas décadas. Foram 30 mil turistas. Já o Museu recebeu 60 mil visitantes.
Antes de ser diagnosticado com a covid-19, neste mês de julho, o presidente Bolsonaro tinha uma visita agendada à região, mas acabou desmarcando após o diagnóstico. Talvez fosse a chance de o principal cartão postal do Piauí chamar a atenção de Brasília aos seus problemas.
Por outro lado, ainda que não renda os dividendos necessários para o plano de reabertura à visitação, que já começa a ser estudado pela Fhumdam e o ICMbio, o parque deverá ser tema de exposição no Memorial da América Latina, em São Paulo. A exposição, que deverá ser realizada logo após o isolamento social imposto pela pandemia da Covid-19, fará um paralelo entre as antigas pinturas em pedra do Brasil e as gravuras da região semiárida do norte chileno, mais especificamente do Complexo Cultural de El Molle.
Exposição
A mostra será formada pelos painéis fotográficos com imagens inéditas sobre a pré-história sul-americana, registradas pelas lentes do fotojornalista pernambucano André Pessoa, que há 30 anos se dedica à documentação científica e publicitária dos vestígios humanos no continente, e já expôs seu trabalho em diversos veículos da imprensa e lugares do mundo. Na exposição, traçará uma comparação entre dois sítios arqueológicos localizados a mais de quatro mil quilômetros de distância um do outro, mas com sinais claros do esforço do homem primitivo para registrar para as futuras gerações seu mundo, meio ambiente, rituais, flora, fauna e atividades cotidianas.
Um dos objetivos da exibição é homenagear os 50 anos da chegada de Niéde Guidon à Serra da Capivara e seu trabalho que a torna a maior arqueóloga do Brasil na atualidade. Somente em janeiro deste ano, Guidom se afastou do trabalho devido a complicações de saúde.
A mostra também fará referência aos 40 anos de pesquisa sobre a pré-história do continente pelo
cônsul do Chile no Brasil, Alejandro Sfeir-Tonsic. O diplomata foi o responsável por um trabalho de investigação sobre a arte na rocha no Chile a partir de 2007 e, dez anos depois, convidado pelo governo do Piauí para visitar a Serra da Capivara, maior sítio de arte rupestre da América, com mais de mil lugares e grutas com pinturas pré-históricas.
“Nesta exposição incrível, vamos comemorar minhas quatro décadas de pesquisas e registros fotográficos pelos cinco continentes, principalmente fazendo um comparativo entre a Serra da Capivara com a minha região no Chile. O sertão piauiense é muito semelhante à região que nasci, no norte chileno. Ambas regiões são extremamente ricas em artes rupestres nas rochas. Na minha região, La Serena, a arte rupestre é formada por gravuras – incisões nas rochas, já na Serra da Capivara se destaca com pinturas – pigmentação”, destaca o cônsul.
Ele ressalta que a exposição é uma forma de reconhecer e agradecer Niède Guidon por seu trabalho “que a torna a maior arqueóloga do continente americano”. “Também é uma ocasião perfeita para mostrar o trabalho fotográfico do André Pessoa, que há três décadas se dedica a mostrar para o público o quanto é importante a cultura ancestral”, completa.
André Pessoa vive desde 1993 na zona de entorno do Parque Nacional da Serra da Capivara. Além de fotografias, produz matérias sobre o local. O Memorial da América Latina, destaca Pessoa, é o local ideal para essa exposição que, segundo ele, não tem fronteiras. “Para mim, de forma profissional e emocional, é a continuidade do meu trabalho de divulgação da arqueologia brasileira. São 30 anos praticamente exclusivos documentando a pré-história brasileira e rodando o mundo em busca de novas experiências, registrando lugares fantásticos. Mesmo tendo feito registros da arte rupestre ao redor do mundo, considero a Serra da Capivara um local único”, aponta.
De acordo com Pessoa, a mostra contará com imagens de descobertas arqueológicas ainda não catalogadas na Serra da Capivara. A expectativa, segundo ele, é que a exposição seja levada para o Chile em 2021.
Parque Nacional Serra da Capivara
O Parque Nacional Serra da Capivara foi criado por meio de decreto em 1979 e tombado pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. O número de inscrições rupestres no parque supera os 40 mil. Com uma área de aproximadamente 130 mil hectares, a reserva está localizada no sudeste do Estado do Piauí e ocupa parte dos municípios de São Raimundo Nonato, João Costa, Brejo do Piauí e Coronel José Dias. A área é caracterizada pela vegetação de caatinga do sertão brasileiro.
Nas pinturas, predominam cenas do cotidiano, dança, sexo, e de pastoreio. Também foi encontrada cerâmica nativa de cerca de 9 mil anos, que a coloca como a mais antiga do continente.
Em suas pesquisas, Niéde Guidon aponta vestígios de 50 mil anos da presença humana na Serra da Capivara. No Chile, no lugar conhecido como Monte Verde, as datações chegam a 33 mil anos. Então, a se confirmar esses dados, o Brasil e o Chile lideram as ocupações humanas mais antigas do continente. Os cuidados e preservação da Serra da Capivara, com suas belezas que serão retratadas nos painéis da futura exposição, são fundamentais para conservação da história e memória das primeiras civilizações americanas.
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