O Ministério Público Federal (MPF) anunciou que vai tomar todas as providências cabíveis para impedir a transferência da demarcação de terras indígenas, da Fundação Nacional do Índio (Funai), para o Ministério da Agricultura. A mudança, feita por medida provisória assinada na última quarta-feira (19) pelo presidente Jair Bolsonaro, foi recebida com “perplexidade”, segundo o MPF. A Funai é vinculada hoje ao Ministério da Justiça e Segurança Pública.
> Bolsonaro, o exterminador do futuro sustentável: o avanço sobre as terras indígenas
Nessa quinta-feira (20), o presidente afirmou que quem decide sobre o assunto é ele e que não vai demarcar terra indígena por considerar que eles já têm áreas demais em suas mãos. “Quem decide na ponta da linha sou eu e eu assino decreto demarcatório. Eu não vou assinar nenhuma nova reserva indígena no Brasil”, afirmou em Guaratinguetá (SP).
Leia também
A transferência de competência já havia sido objeto de outra MP (870), mas esse trecho foi rejeitado pelo Congresso. Em nota (veja a íntegra mais abaixo), o Ministério Público classifica a insistência de Bolsonaro com o assunto como desrespeito às prerrogativas do Legislativo. No comunicado, o subprocurador-geral da República, Antonio Carlos Bigonha, ressalta que a Constituição proíbe a reedição de medida provisória que tenha sido rejeitada ou perdido eficácia em uma mesma sessão legislativa.
“Às já identificadas inconstitucionalidades soma-se agora o desrespeito ao processo legislativo, que afronta a separação de poderes e, em última instância, a ordem democrática”, escreve o subprocurador.
> Veja quem contrariou o governo no destino do Coaf e na demarcação de terras indígenas
Interpretação de texto
O governo alega que quando Bolsonaro assinou a MP 870, em seu primeiro ato de governo, em 1º de janeiro, a sessão legislativa era de 2018. O novo ano no Congresso só começou em fevereiro, com a posse dos novos parlamentares. Mas, para o MPF, essa tese não se sustenta. “Embora a Medida Provisória 870 tenha sido enviada ao Congresso na Sessão Legislativa anterior, ela foi rejeitada na atual sessão legislativa, enquadrando-se, portanto, na vedação constitucional”, rebate Bigonha.
No início do ano, a MP 870, que tratava da reforma administrativa – com criação e extinção de ministérios além da readequação de funções -, transferiu a demarcação de terras indígenas para a Agricultura e a Funai para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. O Congresso, no entanto, ao examinar a medida provisória, decidiu restituir essa competência à Funai, devolvendo o órgão ao Ministério da Justiça.
> Deputados pedem que Maia e Alcolumbre devolvam MP da demarcação para governo
Ambientalistas e defensores da causa indígena também são contrários à nova MP de Bolsonaro. A Rede Sustentabilidade, que tem como sua principal estrela a ex-ministra Marina Silva, já entrou com duas ações no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a medida provisória. Além do argumento da inconstitucionalidade da medida, o partido sustenta que a transferência da demarcação para o Ministério da Agricultura levaria a um conflito de interesses na pasta, que submeteria os interesses dos indígenas aos interesses agrícolas.
“Quem demarca sou eu”
Nessa quinta-feira (20), em São Paulo, o presidente deu de ombros para as críticas. “Quem demarca terra indígena sou eu, não é ministro. Quem manda sou eu nessa questão, entre tantas outras”, afirmou. Ele questionou o tamanho das áreas reservadas aos indígenas.
“A iniciativa é nossa, a prerrogativa é nossa, o Legislativo não pode fazer o que fez. O que fizemos? Nós revogamos o que eles tinham mudado e apresentamos medida provisória respeitando o que eles tinham mudado”, afirmou em Guaratinguetá, em conversa com jornalistas.
Segundo Bolsonaro, os índios “são como nós” e querem televisão. “Temos área maior do que a região Sudeste no Brasil como terra indígena. Reserva Ianomami é duas vezes o tamanho do Rio de Janeiro para nove mil indígenas. Não parece algo anormal? É uma pressão externa e só tem reserva indígena em área rica”, afirmou.
“Queremos integrar o índio à sociedade. O índio é um ser igual a eu e você. Quando se apresenta a nós ele quer televisão, internet, cinema. Quer fazer o que fazemos. Quer um médico, dentista. É um ser humano igual a nós. Os outros, de atrás, querem tratar os índios como pré-históricos, enclausurados na sua reserva a vida toda. Não. O índio vai ser o nosso parceiro”, acrescentou.
Veja a íntegra da nota do MPF:
“Nota pública
A 6 Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal (Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais) manifesta sua perplexidade com o teor de Medida Provisória n. 886, de 18 de junho de 2019, publicada na data de hoje, que que “altera a Lei nº 13.844, de 18 junho de 2019, a Lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991, a Lei nº 12.897, de 18 de dezembro de 2013, a Lei nº 9.613, de 3 de março de 1998, e a Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016, para dispor sobre a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios.”
A Medida Provisória altera o texto da Lei n. 13.844, de 18 de junho de 2019, para estabelecer que “constituem áreas de competência do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento”: (…)”reforma agrária, regularização fundiária de áreas rurais, Amazônia Legal, terras indígenas e terras quilombolas” . Reiterou, dessa forma, disposição existente na Medida Provisória 870, de 1o de janeiro de 2019, rejeitada pelo Congresso Nacional em maio de 2019.
De acordo com a Constituição Federal (artigo 62, parágrafo 10), é proibida a reedição, numa “mesma sessão legislativa”, de medida provisória que tenha sido rejeitada ou tenha perdido a eficácia. Embora a Medida Provisória 870 tenha sido enviada ao Congresso na Sessão Legislativa anterior, ela foi rejeitada na atual sessão legislativa, enquadrando-se, portanto, na vedação constitucional.
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou sobre o tema reiteradas vezes.
Destacamos três precedentes sobre o tema, por sua relevância.
No julgamento da ADI 2.010, o Relator, Ministro Celso de Mello firmou o entendimento do STF sobre o tema, ao afirmar que “O presidente da República, sob pena de ofensa ao princípio da separação de poderes e de transgressão à integridade da ordem democrática, não pode valer-se de medida provisória para disciplinar matéria que já tenha sido objeto de projeto de lei anteriormente rejeitado na mesma sessão legislativa . Também pelas mesmas razões, o chefe do Poder Executivo da União não pode reeditar medida provisória que veicule matéria constante de outra medida provisória anteriormente rejeitada pelo Congresso Nacional.
Já na ADI 3.964, julgada em 11.4.2008, o Ministro Ayres Britto observou que “Tese contrária importaria violação do Princípio da Separação de Poderes, na medida em que o Presidente da República passaria, com tais expedientes revocatório-reedicionais de medidas provisórias, a organizar e operacionalizar a pauta de trabalhos legislativos. Pauta que se inscreve no âmbito do funcionamento da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e, por isso mesmo, matéria de competência privativa dessas duas Casas Legislativas”.
No mesmo sentido caminhou a Suprema Corte, sob a relatoria da Ministra rosa Weber, ao apreciar a Medida Provisória n. 768, que dispôs sobre a organização da Presidência da República e dos Ministérios no governo anterior (Presidente Michel Temer). No julgamento da ADI 5.709, ocorrido em 27 de março de 2019, o Supremo Tribunal Federal entendeu que trazer novamente matéria já rejeitada constitui “ofensa ao princípio de separação de poderes e transgressão à integridade da ordem democrática”. Ressaltou, ainda, que “ao trazer novamente a matéria como forma de burla à Constituição, houve a contaminação da medida provisória impugnada em sua totalidade, porque a vedação resulta de vício de origem e, assim, abrange todo o ato normativo.”
Ressalte-se que a 6 a Câmara demonstrou, por meio da Nota Técnica n. 01/2019/6a CCR, a inconstitucionalidade dos dispositivos constantes da Medida Provisória n. 870, de 1o de janeiro de 2019, e reeditados na Medida Provisória n. 886/2019, e defendeu a manutenção da Funai e da demarcação de terras indígenas no Ministério da Justiça. Às já identificadas inconstitucionalidades soma-se agora o desrespeito ao processo legislativo, que afronta a separação de poderes e, em última instância, a ordem democrática.
A 6a Câmara prosseguirá na defesa dos direitos constitucionais dos povos indígenas e do Estado de Direito por todos os meios institucionais que estiverem ao seu alcance.
ANTONIO CARLOS ALPINO BIGONHA
Subprocurador-Geral da República Coordenador da 6a CCR/MPF”
> Bolsonaro, o exterminador do futuro sustentável: o avanço sobre as terras indígenas