Em novembro de 2011, numa comissão de parlamentares, o ministro da Defesa, Celso Amorim, saiu em defesa da necessidade de armar o país contra os Estados que cobiçam o petróleo, as florestas e os alimentos brasileiros. Este raciocínio pode ser qualificado de muitas maneiras, mas não de ser original.
No século 19, Napoleão advertia o povo francês sobre a cobiça de todas as monarquias europeias contra a grandeza da França. Já em 1914, o corrupto partido Social Democrata Alemão aprovava os créditos de guerra para o Kaiser, aduzindo que, mesmo que a Alemanha fosse imperialista, a Rússia era muito mais (!). Stalin, cujo maior inimigo era o nazismo, se aliou com este para defender-se de um Estado fraco e paupérrimo como a Polônia, enquanto Hitler advertia sobre o perigo representado pela França, a Inglaterra, os judeus, os ciganos, os gays e os povos eslavos.
Nossos países não quiseram privar-se de participar nesses sangrentos espetáculos de circo: a ditadura argentina (autora de mais de 30 mil assassinatos) conseguiu em 1982 o entusiasmado apoio do povo, mostrando como umas míseras ilhas habitadas por menos de 2 mil britânicos havia 150 anos, colocavam em mortal risco a soberania do país. (A ideia dos militares foi boa para a democracia, porque sua derrota apressou sua saída.)
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O que, sim, pode ser original no ministro Amorim é a falta de identificação do inimigo. Ele não disse quais seriam, em algum futuro, mesmo remoto, os possíveis candidatos a cobiçar a riqueza brasileira. Ele define sua estratégia como a “construção de um cinturão de paz e boa vontade na América do Sul e de dissuasão para fora do continente”.
Portanto, os países da região não devem estar entre os possíveis cobiçosos. Tampouco pode ser a África, devastada por racismos de todas as nacionalidades. Os grandes territórios com alta população, como a Índia, a China e Rússia, são poderosos “emergentes” que formam o exclusivo clube BRIC e, portanto, não poderiam colocar-se contra seus amigos do oeste. Amorim fez uma ressalva interessante:
“Hoje, estamos fora dos eixos de conflito, mas não posso garantir que isso ocorra no futuro.” Ou seja, o ministro não pretende predizer o futuro, mas mostra um perigo. No entanto, qualquer projeto defensivo com um mínimo de realismo deve imaginar cenários futuros que, se não prováveis, pelo menos sejam possíveis.
Parece ridículo sugerir que o panorama mundial possa mudar tão radicalmente em algumas décadas que o Brasil passe a integrar o conflito de Meio Oriente, ou a participar das crises político-militares asiáticas, ou que a geografia física mude de lugar, colocando o Brasil na fronteira com Israel. O ministro não disse isso, é claro, mas o difuso fantasma da agressão, cuja identidade e percurso não mostra, parece sugerir que tudo pode acontecer se os invejosos de grandeza brasileira se unissem.
Ora, se considerarmos um cenário que tenha um mínimo de factibilidade, os inimigos futuros do Brasil não podem estar muito longe. Quantos séculos deveriam passar para que uma potência asiática pudesse ocupar territorialmente a América do Sul usando armas e navios convencionais, e estabelecer linhas de abastecimento de milhares de quilômetros numa guerra nuclear?
(Se falarmos em armas nucleares, estaríamos em outra hipótese de conflito, que já foi adiantada pelo falecido vice-presidente e repetida até o esgotamento por diversos chefes militares. Mas o ministro da Defesa parece ter o bom critério de não referir-se a isso, pelo menos por enquanto.)
De fato, os únicos que poderiam ameaçar o Brasil (se decidirmos levar a sério o novo apocalipse), são os Estados Unidos e a União Europeia.
A cobiça a que se refere Amorim parece representada em várias manifestações dos Estados Unidos há muitos anos. Por um lado, a referência recorrente à Amazônia, algumas insinuações sobre o subsal (ou “pré-sal” como se diz no Brasil), certo desconforto da Casa Branca pelo aparente “orgulho nacionalista” do Brasil, a fraternidade brasileira (sincera?) com os países que os americanos chamam de “Eixo do Mal”, e outros sintomas isolados.
O discurso populista cívico-militar no Brasil parece interessado em mostrar que o país pode ter sua soberania ameaçada pelos Estados Unidos, apesar da colaboração que existiu sempre entre ambos os Exércitos. Obviamente, ninguém é tão pouco diplomático para dizer isso com todas as letras, mas a advertência está colocada implicitamente. Ninguém reagiu há alguns anos quando o então chanceler ameaçou pequenos países como o Equador e a Bolívia por tentar questionar o saqueio a que foram submetidos por empresas brasileiras. No entanto, é possível que o atual establishment pense que talvez a população apoiasse o crescimento das FFAA, se temesse que os antigos amigos americanos pudessem tornar-se poderosos inimigos.
Segundo Amorim, a sociedade e o Parlamento deveriam entender que as Forças Armadas são “mais ou menos, como um seguro de vida. Você pode viver 80 anos sem precisar de um, mas sempre pode haver um imprevisto.” (Dito seja de passagem, a comparação suscita algumas dúvidas; se houver algum imprevisto que me obrigasse a usar meu seguro de vida, isso quer dizer que devo estar morto. Talvez o ministro quis dizer “seguro de saúde”.)
Mas as novas declarações dos Estados Unidos nos dias 4 e 5 de janeiro de 2012 modificam um pouco esse panorama, caso Amorim tenha pensado nos Estados Unidos como possível fonte de “cobiça”. Com efeito, a prometida redução do orçamento militar americano deve ir acompanhada do direcionamento de parte das verbas restantes para recursos tecnológicos diferentes dos recursos da guerra convencional.
O Pentágono parece querer concentrar-se em robótica, cibernética e inteligência artificial para garantir seu predomínio naval em Oriente. Se o Brasil quiser se defender realmente de uma ação americana, deveria desenvolver armas que neutralizem o uso de instrumentos bélicos de alta tecnologia, os quais, se não excedessem as condições econômicas do país, sem dúvida excederão o conhecimento técnico-científico que o país possui. Ou será que os Estados Unidos venderiam armas cibernéticas ao Brasil para que se defenda dele mesmo?
O “martelar” do discurso militarista não é novo na América Latina. Desde 1828, mais ou menos, Brasil e Argentina concorreram ou se complementaram na tarefa de obter a hegemonia da América do Sul, para pesadelo dos outros países da região, como Paraguai, que nunca se recuperou do extermínio a que foi submetido.
Mas, após a derrota das Falklands/Malvinas, a Argentina perdeu a possibilidade de tornar-se um subimperialismo viável. Portanto, e apesar de todos os protestos de soberania e “altivez” nacional, a Casa Rosada talvez aceitasse a aliança de “boa vontade” proposta por Amorim. Um sério indício é que setores moderadamente fascistas (não me refiro ao nazismo católico, ainda bastante poderoso na Argentina, e dono de uma xenofobia ímpar) cobram do governo atual um maior comedimento com o Brasil. Como o Palácio San Martín não quer surpresas, nestes dias foi aprovada uma lei antiterrorista exigida pelos Estados Unidos.
Enquanto se espera a oportunidade de usar o “seguro de vida”, o Brasil, a Venezuela e a Argentina, usando esta aliança de boa vontade, poderiam fortalecer seus exércitos para reavivar planos de protagonismo castrense na região. Muitos países que hoje são considerados “malditos” e “párias” não seriam desprezíveis para uma aliança oriunda do Terceiro Mundo, especialmente num momento de crise no Primeiro.
Um futuro de reativação bélica nas Américas, que parecia abandonado após Malvinas, não é certamente alentador para países com democracias frágeis, formais, isoladas internacionalmente, e inimigas dos direitos humanos. Por outro lado, também é evidente que a subordinação de qualquer projeto do país ao ritmo de sabres e botas pode ser quase tão nociva como um verdadeiro golpe de Estado.
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