A colisão com fachadas e janelas de vidro nas cidades é a primeira causa mortis não natural de pássaros em todo o mundo, superior as mortes por gatos. Vidros refletem o céu e a paisagem e os pássaros confundem o reflexo com o meio-ambiente, colidindo. Quanto mais vidro, mais colisões. Há mortes noturnas de aves desorientadas pela iluminação artificial, embora a grande maioria dos choques ocorra durante a luz do dia. Quando migrando, bando de aves tombam as centenas, morrendo instantaneamente. Por ter olhos laterais, a maioria das espécies têm uma percepção menor de profundidade que nós. A colisão de aves se dá em alta velocidade, quase sempre fatal. Essa tragédia está visualmente documentada. As cenas são chocantes.
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A mortandade de pássaros por colisão não é um ‘pequeno problema’ ambiental. Está se transformando em uma questão trágica em todo o mundo. Um estudo publicado pela Smithsonian Institution em 2014 estimou 508 milhões de mortes anuais por colisão de pássaros contra edifícios altos, 339 milhões em edifícios médios e 253 milhões em residências em todo o mundo. É uma estatística assustadora. Em uma única casa envidraçada, estima-se que dez aves morram por ano. Pesquisadores, ambientalistas e autoridades estão se dando conta da dimensão da questão.
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Pássaros enxergam através de um espectro maior de cores e visualizam imagens com muito maior rapidez que humanos. Em compensação, a visão deles têm menor capacidade de contraste, dificultando a identificação de obstáculos nas imagens. Visualizando o céu ou a vegetação refletida na fachada de vidro como uma verdadeira paisagem, os pássaros voam na sua direção colidindo em alta velocidade. Diferentes espécies colidem com vidros, desde os minúsculos beija-flores até os encorpados falcões e gaviões. Em regiões de migração, o perigo aumenta consideravelmente.
O uso do vidro na construção civil cresce cada ano. O barateamento na produção do vidro e favorece seu uso em fachadas, janelas, painéis, etc., aumentando o risco de colisão. Nos últimos anos tornou-se moda a cerca de vidro murando jardins, aumentando ainda mais os riscos em vôos rasteiros. Por ser transparente o vidro deixa a luz passar, tornando a obra supostamente ‘ecológica’ na medida que a integra ao mundo exterior. Puro equívoco. Se é comum seres humanos, mesmo advertidos por avisos e esquadrias trombarem em vidros, imagine-se os pássaros. Cientistas americanos calculam que cada 10% de superfície envidraçada de uma obra aumenta em 19% o risco de colisões de pássaros.
Quanto mais alto o prédio como os arranha-céus, maior o risco de colisão. Em Brasília inúmeras mortes por colisão foram registradas no imponente prédio envidraçado da Procuradoria Geral da República (PGR), por exemplo. Entretanto, mesmo pequenas edificações como casas domiciliares que utilizam abundantemente o vidro representam perigo. Se nada for feito, o aumento indiscriminado de uso do vidro provocará graves consequências para a sobrevivência das espécies. É útil relembrar que muitas espécies já estão na lista de extinção por motivos antropogênicos, principalmente por causa da ocupação urbana ou o desmatamento no campo.
Não é tempo de lamentar ou ficar aguardando que soluções milagrosas apareçam, entretanto. Há tecnologias disponíveis que podem ser imediatamente postas em prática para fazer a diferença já. Há boa vontade por parte de especialistas e autoridades. É necessário apenas que se reconheça que a morte de pássaros conta, é preciso mantê-los vivos. Além da beleza dos vôos, cantos e cores que encantam as pessoas, as aves desempenham um papel ecológico importante: controlam a população de insetos e roedores e disseminam sementes que rejuvenescem as matas.
Nos Estados Unidos a American Bird Conservancy’s Collisions Program coordena a nível nacional ações que visam reduzir a mortalidade de pássaros. O trabalho inclui programas de educação ambiental, difusão de informações, avaliação de soluções, estímulo ao desenvolvimento de materiais, etc. Apesar dos esforços, especialistas reconhecem que as soluções estão ainda em fase experimental. Serão necessários anos de mensuração até que determinada tecnologia possa ser designada como bird friendly construction. Por exemplo, se reduzirmos as colisões em 75% em um prédio que mata 500 pássaros por ano, haverá ainda 125 aves mortas. Se considerarmos que algumas das aves mortas podem estar em processo reprodutivo, esse numero se multiplicaria.
Vidros contribuem com a estética e a iluminação, mas aumentam outros custos. Arquitetos constataram que uma proporção maior que 30% de vidro em um edifício triplica os custos com refrigeração, especialmente em países de clima tropical como o Brasil. Embora o uso do vidro cresça continuamente por causa dos custos e benefícios da transparência, entidades de arquitetos e engenheiros estão alertas e já discutem qual material ameaça e qual é amigável aos pássaros. Embora eles mesmos só confirmam se uma edificação é ameaçadora ou amigável depois de pronta a obra. Por isso, arquitetos e construtores são parceiros chaves na implantação de medidas para reduzir ou eliminar a morte de pássaros por colisão.
Parlamentares são também parceiros fundamentais porque irão criar e aprovar legislação e normas que regulam o uso do material. Leis pertinentes são cada vez mais frequentes. Nos Estados Unidos, ainda em meados do século XX, após a extinção da endêmica ‘pomba de passagem’, a mais comum em todo aquele país até então, entrou em vigor uma legislação federal (o Migratory Bird Treaty Act), que segue em vigor. A lei penaliza os responsáveis por morte de aves. Naquele país e no Canadá, cada vez mais cidades criam legislação local normatizando o uso do vidro. Toronto (2009) e San Francisco (2010) são exemplos. Aqui no Brasil a cidade de Santos é sempre citada. Normatização voluntária por acordos também está em vigor entre arquitetos e autoridades em outros lugares.
Soluções arquitetônicas em prédios já construídos existem e estão sendo experimentadas em vários prédios. Arquitetos criaram paliativos que ‘embrulham’ o prédio inteiro no caso de edificações críticas. A aplicação de películas, redes, fitas adesivas, persianas ou brise (sombreamento através de lâminas de madeira, alumínio ou plástico) de baixo custo minimizam colisões. Películas com listras verticais, horizontais ou pequenos pontos, de tonalidade diferente do vidro, já estão disponíveis no mercado por preços razoáveis. A maioria dessas soluções não compromete a estética desde que se leve em conta a amplitude da superfície, a opacidade e cor do vidro, etc. Muitas dessas aplicações recobrem apenas 5% da superfície do vidro, intervindo minimamente na estética e na funcionalidade original. Para novas edificações existem vidros gravados, opacos ou manchados, arquitetonicamente atraentes e amigáveis aos pássaros. Soluções existem, é só uma questão de opção. A escolha do material depende de cada caso, mas tudo depende da vontade política de evitar as colisões.
O que pode ser feito de imediato? Primeiro, sensibilizar entidades de arquitetos, engenheiros, cientistas, autoridades e o público em geral. Promover educação ambiental que incluía o tema das colisões e disseminar em massa a tragédia. Ciente do problema, a população e ambientalistas cobram e apoiam iniciativas públicas. Sensibilizar também entidades de classe da construção civil a adotar padrões ambientais como o LEED (sigla em inglês do ranking de edificações sustentáveis) que diminui o impacto ambiental e custos, valorizando o imóvel. Estimular prefeituras ou governos estaduais a estabelecer, junto com a ABNT, normas técnicas sustentáveis para o uso do vidro, incluindo exigências de remediar fachadas de prédios de risco já construídos. Estimular parlamentares a nível local (vereadores), estadual e nacional (deputados e senadores) a apoiar a criação de legislação pertinente. Não há soluções globais, cada ambiente e cada imóvel precisa ser considerado. Mas há uma determinação que precisa tornar-se unânime: a vida de pássaros conta.
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* O autor é professor-titular aposentado da Universidade de Brasília, observador de pássaros e membro dos grupos Observaves de Brasilia e Florianópolis.
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