Do que estamos falando?
Semana passada acabou a água em casa pela primeira vez. O problema na verdade era na caixa d’água, mas ao comentar com familiares e amigos muito me impressionou a reação de espanto deles, como se ficar sem água fosse algo impossível de acontecer, afinal cai do céu, não é mesmo?
Muita gente ainda não caiu na real do que estamos vivendo. Parece ser difícil acreditar que vai faltar água, ou melhor, que já está faltando. Todo mundo sabe da crise hídrica, mas ninguém parece acreditar de verdade, parece que queremos pagar para ver. Mas o assunto é gravíssimo e já passou da hora de entender o que estamos vivendo. A questão não é mais que vai faltar um pouco de água e sim que não teremos mais água.
A Sabesp anunciou alguns dias atrás o que já estava previsto por especialistas há anos: o Sistema Cantareira vai secar completamente. Se tivermos sorte, temos pouco mais de dois meses até lá. Depois disso, apesar de muitas cidades já terem suas periferias passando por enormes períodos ininterruptos sem água, não teremos mais uma gota de água em nossas casas. E se enganam aqueles que moram no interior de São Paulo e acham que por este motivo não precisam se preocupar. Já pararam para pensar onde a capital e a região metropolitana irão buscar água? Para agravar ainda mais a situação os estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais vivem situações bem parecidas.
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De quem é essa conta?
A catástrofe paulista foi anunciada há mais de dez anos e o culpado não foi São Pedro. Sim, os fatores climáticos contribuíram, porém, o que realmente faltou foi planejamento, liderança política e transparência para evitar cenário extremo que temos hoje. Desde 2003 a crise atual já era prevista e os gestores públicos foram alertados, como na reportagem da Folha de São Paulo, que além das causas, destacou as medidas que deveriam ser tomadas naquela época para que esse cenário de hoje fosse evitado. A Sabesp anunciou, na mesma época, planos de médio e longo prazo para buscar novas vias hídricas e reduzir a dependência do Sistema Cantareira. Hoje, dez anos depois, nenhuma obra foi concluída.
PublicidadeO governo do Estado de São Paulo, sob a gestão do PSDB há duas décadas, negou o problema durante muito tempo, atrasando a busca e soluções e confundindo as pessoas. Como se vivesse em um mundo paralelo, Geraldo Alckmin lidou com impropriedade, fazendo vista grossa, como fazem os três macacos sábios que, na interpretação budista, acreditam que não ouvir, ver ou falar de um problema faz com que sejamos poupados dele. O governador não viu a crise, não escutou os alertas, e não falou sobre a falta d’água. Porém, o mal não foi evitado.
Geraldo Alckmin terminou 2014 afirmando que “não falta e não irá faltar água em São Paulo”, “não há nenhuma possibilidade de racionamento” e “estamos preparados para a seca”. Quem estamos? Preparados como? Por que o problema não foi discutido com a população? Por que não se assumiu o racionamento durante tanto tempo?
Ao negar a crise e esconder informações, além de agravar o cenário, o governo não permitiu em nenhum momento que a sociedade tivesse noção clara da gravidade da crise, sem alertar de forma transparente as pessoas, levando ao que citei no começo desse artigo: muita gente ainda achando que é impossível ficar sem água. Essa postura, aliada a falta de visão estratégica durante todos esses anos, resultou no que temos hoje.
O direito de acesso à água é um direito humano, porém, não basta garanti-lo sem transparência e participação social. Faltam informações sobre os estoques de água, meios alternativos de abastecimento, horários de racionamento, riscos associados à seca, planos e medidas de emergência, planejamento de longo prazo, como economizar e se programar. Somente nesta quarta-feira, 28, que a Sabesp informou que irá informar os horários e locais que faltarão água a partir da próxima semana.
A busca de soluções deveria ter sido tratada com seriedade pelo governo do Estado juntamente com o governo federal, que também tem um papel a ser cumprido nessa história, através da Agência Nacional de Águas e do Ministério do Meio Ambiente, a quem compete organizar a Política Nacional de Recursos Hídricos. O pacote de medidas e obras anunciado após as eleições 2014 pela Dilma e pelo Alckmin é insuficiente, não resolve o problema no curto prazo e veio tarde demais.
E por que as grandes obras planejadas não foram executadas antes? Será que faltaram recursos? Ao que parece dinheiro não faltou e a Sabesp lucrou bastante nos últimos anos. O estatuto social da empresa define que os acionistas podem receber até 25% do lucro líquido anual da empresa. Durante o governo Alckmin essa distribuição bateu recorde. Em 2003, 60,5% do lucro foi para os acionistas. Entre 2003 e 2013, cerca de um terço do lucro líquido total foi repassado aos acionistas, um valor de aproximadamente R$4,3 bilhões, o dobro do que a Sabesp investe anualmente em saneamento básico.
E quem é o maior acionista da Sabesp? O próprio governo do Estado, que detém 51% da empresa. Ou seja, 51% do lucro dividido voltam para o governo. E de que forma esses dividendos tem sido reinvestidos na Sabesp e na garantia do acesso à água de qualidade? Foi priorizada a gestão correta dos recursos hídricos? Em 2012 e 2013 não foi tomada uma medida para proteger o Sistema Cantareira e foram os dois anos em que a Sabesp obteve os maiores lucros líquidos da história da companhia. Ou seja, o lucro dos acionistas foi colocado na frente do bem estar da sociedade.
Como sair dessa?
Óbvio que cada um de nós, cidadãos comuns, também temos nossa parcela de culpa nessa história. Usamos a água de forma errada, assim como todos os demais recursos naturais. Temos uma relação cultural totalmente equivocada com a água, acreditando que ela nunca irá faltar e que seca é coisa somente do Nordeste. Precisamos parar de desperdiçar. Há dez anos, um morador da Grande São Paulo gastava em média 150 litros de água por dia, hoje são 175 litros, 65 a mais que o recomendado pela OMS.
Há dois anos eu estive no sertão do Piauí, em uma das regiões mais secas do Brasil, onde há muito tempo a água já não chega. Tomei banho com menos da metade de um balde de água, andei para buscar água no poço e também tive que improvisar para escovar os dentes sem água. Desde então minha relação com a água nunca mais foi a mesma e aquelas práticas básicas, que aprendemos na escola, mas nunca levamos a sério, como por exemplo, desligar a torneira enquanto se ensaboa no banho, passaram a fazer parte da minha vida. Porém, apesar de básicas, são práticas que estão longe de serem hábitos da população e que eu mesma só passei a praticar depois de viver uma realidade extrema. É tudo questão de hábito e nós podemos, de fato, fazer muito mais do que fazemos hoje. A mudança é cultural e precisa ser permanente. Não se pode parar de usar racionalmente a agua só porque voltou a chover, por exemplo.
Mesmo reconhecendo nossa parcela de culpa, é preciso que outras parcelas (bem maiores que a nossa) sejam consideradas. É necessário repensar como a agricultura e a indústria usam a água e como esses setores estão sendo cobrados. 70% da nossa água é consumida pelo agronegócio e 22% pela indústria. Esse desperdício não é discutido a população é cobrada como se fosse a única culpada.
O que nos resta agora? Executar um forte plano de contingência, que deve ser liderado pelo governo estadual junto a sociedade. Nesta semana foi anunciada a medida do racionamento, onde toda a região metropolitana de São Paulo ficará em um sistema de rodízio com cinco dias sem e dois com água. Prefeitos da Grande SP cobraram o Estado, uma vez que foram informados das medidas, que afetam diretamente suas cidades, pela televisão. As consequências humanas, sociais, econômicas e ambientais serão as mais graves possíveis. A falta d’água afeta a dignidade humana, paralisa as atividades econômicas e interfere diretamente na saúde pública.
As linhas de ação daqui para frente devem ser claras e a população deve ser informada e orientada. Diversas organizações e especialistas da área já estão fazendo essa demanda, como a Aliança pela Água, que reúne 30 ONGs visando propor soluções e cobrar providências do poder público.
Da mesma forma que a corrupção, a ineficiência e a má gestão dos recursos públicos, como nesse caso, condena não só as cidades, mas também o país ao subdesenvolvimento econômico e social crônicos. As perspectivas são as piores possíveis. Duas décadas de gestão e nenhuma ação para evitar uma crise como essa, é tão criminoso como qualquer desvio de recursos que vemos por ai. Gestão pública ineficiente mata.
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