Quais as reais motivações que conduzem um magistrado, sobretudo na cúpula do Poder Judiciário, na atual quadra histórica brasileira, a decidir neste ou naquele sentido? A indagação pode ser ampliada para a atuação própria dos mais variados operadores do direito (advogados, membros do Ministério Público, professores, etc).
São duas, em resposta à pergunta anterior, as possibilidades básicas: a) interesses pessoais e b) realização ou aplicação da ordem jurídica (art. 8o. do novo Código de Processo Civil: “Ao aplicar o ordenamento jurídico, o juiz …”). Existe, entre os interesses pessoais, uma variedade considerável de hipóteses. Entre outros, pode ser um interesse: a) individual (forma de agradar uma autoridade com vista à obtenção de um determinado cargo ou geração, nas mesmas circunstâncias, de uma “moeda de troca”); b) familiar (beneficiar ou favorecer um parente ou o grupo como um todo); c) financeiro (um ganho pecuniário diretamente decorrente da decisão/manifestação) ou d) político-ideológico (favorecimento de determinadas pessoas, grupos ou setores em razão do alinhamento com projetos políticos ou modelos de funcionamento da sociedade).
A busca de realização de interesses pessoais na atuação jurídica é algo reconhecido, para inúmeros casos, como “natural” ou “esperado”. Afinal, o Direito pretende definir condutas ou comportamentos, realizando valores, em praticamente todas as áreas de convívio humano. Existe, portanto, uma enorme “margem de manobra” para dar aparência de cuidadosa aplicação da ordem jurídica quando, em verdade, perseguem-se os interesses pessoais referidos.
Na singela obra COMO FUNCIONA O DIREITO NA ATUALIDADE – UMA INTRODUÇÃO AO DIREITO, destaquei que o entendimento tradicional acerca do fenômeno jurídico partia de uma visão mecanicista do Direito. A interpretação consistiria na atividade de revelação do significado dos elementos normativos. A aplicação seria o momento final de concretização do significado encontrado na interpretação. Assim, a solução do problema jurídico envolveria uma subsunção acrítica do fato ao enunciado previsto em lei (paradigma legalista). Em outras palavras, a essência do Direito consistia num processo lógico de submissão da lei, como premissa maior, ao fato da vida, como premissa menor. Essa dedução lógica produziria um resultado natural e claro simplesmente declarado pelo operador jurídico, principalmente o juiz.
Também pontuei, na obra citada, que várias reflexões teóricas distintas convergiram, notadamente a partir da segunda metade do século XX, para a superação da chamada hermenêutica jurídica tradicional (ou clássica). Esse processo envolveu todas as áreas do Direito, especialmente o Direito Constitucional. Ficou clara a insuficiência do império da lei, pura e simplesmente, para a solução socialmente adequada, com respeito à dignidade humana, de uma infinidade de problemas cada vez mais complexos. Essas novas teorizações atingiram os fundamentos ou pressupostos de compreensão e aplicação do Direito. Assim, pode-se afirmar que os paradigmas de operacionalização do Direito foram profundamente alterados nas últimas décadas. Esses novos olhares acerca do fenômeno jurídico se consolidaram e são predominantes.
Disse, ainda, que atualmente existe o reconhecimento da normatividade dos princípios, ou seja, o status de norma jurídica. Os princípios podem (e devem) ser aplicados diretamente pelo operador do Direito na solução de casos concretos (paradigma principiológico). A intermediação do legislador, conforme o caso, não é imprescindível. Mais do que a natureza ou status de enunciado normativo, os princípios foram conduzidos ao centro do sistema jurídico. Nesse sentido, a Constituição passa a ser entendida como um sistema aberto de princípios e regras destinado a realizar valores (com dimensão suprapositiva). O Direito, portanto, visto como sistema aberto, sofre a inexorável influência de elementos externos. Também abandona a tentativa infrutífera de regular, mediante regras específicas, o complexo e infindável conjunto de hipóteses emergentes da realidade social.
Na lição do constitucionalista e ministro do Supremo Tribunal Federal LUÍS ROBERTO BARROSO, três possibilidades de aplicação dos princípios devem ser consideradas: a) “o princípio incide sobre a realidade à semelhança de uma regra, pelo enquadramento do fato relevante na proposição jurídica nele contida”; b) “a paralisação da aplicação de qualquer norma ou ato jurídico que esteja em contrariedade com o princípio constitucional” e c) “o sentido e alcance das normas jurídicas em geral devem ser fixados tendo em conta os valores e fins abrigados nos princípios constitucionais”. Essas possibilidades abrem um riquíssimo, complexo e abrangente campo para construções legítimas (aplicação da ordem jurídica) e ilegítimas (satisfação de interesses pessoais) para as mais agudas encruzilhadas jurídicas.
Os paradigmas atuais de operacionalização Direito viabilizam, de forma muito mais intensa que em passado recente, a construção de soluções não expressamente inscritas em enunciados normativos. Essas construções podem, entre outros resultados, realizar importantes avanços civilizatórios, viabilizar aperfeiçoamentos relevantes de instituições do Estado e de institutos jurídicos e corrigir sérias distorções na condução dos negócios públicos. São finalidades das mais nobres a serem concretizadas pela ordem jurídica. Por outro lado, as decisões caprichosas, interesseiras e escusas encontram terreno fértil para prosperar com uma roupagem elegante de atuação conforme com o Direito, notadamente os princípios e valores constitucionais.
Essas considerações induzem a realização de uma indagação com resposta de altíssimo grau de dificuldade. Como, afinal, identificar se uma manifestação jurídica foi pautada em interesses pessoais ou na realização/aplicação da ordem jurídica?
A primeira trilha a ser seguida consiste numa análise cuidadosa do contexto em que foi realizada a manifestação, de caráter decisório ou não. O histórico e natureza de decisões anteriores e os personagens diretamente beneficiados são, entre outros, aspectos a serem considerados.
O outro caminho a ser seguido busca identificar a consonância, maior ou menor, da manifestação com a ordem jurídica, seus princípios, valores e objetivos devidamente postos. Dois exemplos esclarecedores: a) uma decisão/manifestação que privilegia a recondução de ocupantes de certas posições de poder, notadamente contra enunciado normativo expresso, parece afrontar os princípios democrático (alternância), republicano e do pluralismo político e b) uma decisão/manifestação que “esquece” uma competência, notadamente aquela expressamente prevista na Constituição, parece buscar um objetivo não contemplado na ordem jurídica (ausência de responsabilização pela prática de ilícitos).
Assim, as atuais características do Direito e seu funcionamento/aplicação permitem, como nunca antes, “esconder” razões ou motivações escusas em manifestações, decisórias ou não, revestidas de um belo discurso jurídico, notadamente invocando indevidamente princípios, valores e objetivos da ordem jurídica.
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O problema é que atualmente o Juiz advoga, ou por causas de seus familiares advogados ou por causas sociais, e se esquecem que usam toga e não beca, para serem julgadores imparciais.