Alessander Jannucci *
Na última década desenvolveu-se significativamente a figura da Advocacia Pública Federal como Advocacia de Estado, e não mais de Governo. De fato, afastou-se da mera defesa de decisões do gestor e voltou-se à defesa do interesse público, fundamento motivador das mais diversas políticas estatais.
Contudo, há quem ainda não tenha notado ou não queira notar esta substancial mudança no panorama institucional da Advocacia Pública Federal. Sustentam, equivocadamente, que a AGU não ostentaria este papel constitucional, supostamente adstrito a outras instituições. Afirmam, ainda, que a Advocacia Pública Federal não faz uso desta prerrogativa, mas somente advogados públicos municipais.
De início cumpre rechaçar o argumento de que a Advocacia Pública Federal não possuiria lastro constitucional para aludida atuação. O próprio art. 131 da Constituição Federal deixa claro cumprir à Advocacia-Geral da União não só representar, judicial e extrajudicialmente a União, mas também exercer as atividades de consultoria e assessoramento do Poder Executivo.
No conjunto destas atividades insere-se, inegavelmente, o exercício do controle interno das atividades. Rememore-se que, no sistema de checks and balances, diversos são os mecanismos para fiscalizar as atividades do gestor público, tendo o art. 70 do Texto Constitucional destacado a importância do sistema de controle interno de cada Poder. Este controle interno, ao fim e ao cabo, apenas será real se houver o devido assessoramento aos órgãos estatais, papel inegavelmente desempenhado pela Advocacia Pública. Este assessoramento, por seu turno, somente terá eficácia se presentes medidas que resguardem o cumprimento de seus objetivos, dentre elas o ajuizamento de ações de improbidade administrativa.
Nas ações de improbidade administrativa, notório o exercício das prerrogativas da Advocacia Pública Federal na defesa do interesse público. Negar esta realidade corresponde a observar o mundo pelo retrovisor, esquecendo-se de olhar não só para frente, mas também a seu redor. O argumento de alguns de que o simples fato de não serem ações de improbidade propostas pela Advocacia Pública Federal objeto de recursos especial ou extraordinário nada diz, constituindo sofismo ou, na melhor das hipóteses, mero exercício de sofomania. Sobremais, cuida-se de argumento contraditório, pois a interposição de recursos especial e extraordinário (ou melhor, seu cabimento) deveria ser exceção, e não regra processual. Além disso, o fato de aludidos feitos não serem impugnados em sede de recursos especial e extraordinário pode revelar o acerto não só de suas proposituras, mas também a escorreita condução destes processos – nunca o contrário!
> Judicialização da Previdência e advocacia pública: colocando os pingos nos is
Somente para ilustrar esta assertiva, de rigor transcrever trecho contido no Relatório Final da Ação n. 01/2018 da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção, responsável pela elaboração de um Plano de Diretrizes de Combate à Corrupção, destacando o papel da Advocacia Pública Federal no trato desta questão (disponível em http://enccla.camara.leg.br/acoes/copy_of_ENCCLA2018Ao01PlanodeDiretrizesdeCombateCorrupo.pdf; consulta em 01/02/2019, às 17h23min):
Advocacia-Geral da União:
No ano de 2011, a Advocacia-Geral da União recebeu o prêmio Innovare15 com a criação do Grupo Permanente de Atuação Pró-ativa da Advocacia-Geral da União. Tratou-se da criação de um grupo especializado de atuação no combate à corrupção, servindo como paradigma para a estruturação de diversos órgãos do Ministério Público e Advocacia Pública.
No âmbito da Procuradoria-Geral Federal, órgão integrante da Advocacia-Geral da União, foi criada a Equipe de Trabalho Remoto no Combate à Improbidade Administrativa (ETR-PROBIDADE), com a atribuição de exclusividade de análise de procedimentos de instrução prévia para o ajuizamento de ações de improbidade e ações cautelares correlatas, bem como relativas a arresto de acórdãos do TCU ainda não transitados em julgado. Aludida equipe trabalha na análise de procedimentos desta natureza desde junho de 2016, e apresenta resultados substanciosos.
Antes da implantação desta equipe, a Procuradoria-Geral Federal tinha histórico de ajuizamentos irregular, registrando o ano de 2015 o ajuizamento de apenas 19 (dezenove) ações de improbidade. Nos anos seguintes, em virtude desta iniciativa, houve expressivo incremento no número de ações de improbidade ajuizadas, envolvendo 39 (trinta e nove) autarquias e fundações públicas federais (Agências Reguladoras, Órgãos Ambientais, Universidades, etc).
Diferentemente do histórico anterior da Procuradoria-Geral Federal, o ETR-PROBIDADE ajuizou 76 (setenta e seis) ações de improbidade em 2016, 328 (trezentas e vinte e oito) em 2017 e 123 (cento e vinte e seis) até julho de 2018. Estas 527 (quinhentas e vinte e sete) ações ajuizadas após a criação do ETR-PROBIDADE representaram o valor total de R$ 1.800.000.000,00 (um bilhão e oitocentos milhões de reais), havendo 116 (cento e dezesseis) liminares de bloqueio de bens deferidas, no valor de R$ 380.000.000,00 (trezentos e oitenta milhões de reais) com, inclusive, ações de improbidade ajuizadas simultaneamente à deflagração de operações da Polícia Federal, revelando coordenação e engajamento de diversos órgãos no combate à corrupção.
O uso intensivo de ferramentas de tecnologia (SAPIENS) permitiu que, com apenas 7 (sete) Procuradores Federais destacados para o ETR-PROBIDADE, de um quadro de mais de 4.300 (quatro mil e trezentos), aludidos resultados fossem alcançados.
Ademais, a atuação desta equipe está permitindo a Administração Pública elaborar amplo diagnóstico que auxiliará na elaboração de matrizes de risco, afetas à área de improbidade administrativa, nas mais diversas entidades representadas.
Nítido, portanto, que, ao contrário do que alguns tentam alardear infundadamente, a Advocacia Pública Federal vem exercendo, a contento, a prerrogativa conferida quanto à legitimidade para o ajuizamento de ações de improbidade administrativa, com resultados expressivos.
Agregue-se a isto o fato de que, diferentemente do Ministério Público Federal, a Advocacia Pública não conta com a prerrogativa do Inquérito Civil Público, do poder de requisição de informações sob pena da prática do crime de desobediência, etc. Ainda assim, inegável a expressividade dos números supracitados, o que revela seu esmero e singularidade no trato destas questões.
A ideia de que a Advocacia Pública Federal estaria vinculada ao interesse particular dos gestores, e não ao interesse público, além de retrógrada e vetusta, situa-se absolutamente desalinhada aos hodiernos parâmetros esculpidos pela realidade brasileira, a buscar lastro no esforço recíproco, na atuação coordenada e conjugada dos mais diversos órgãos envolvidos no combate à corrupção, sejam eles governamentais ou mesmo componentes da sociedade civil.
Já distante a época em que a sociedade atrelava atividades de combate à corrupção a esta ou àquela instituição. Os tempos são outros! Hoje, pouco importa ao pai que deixa seu filho na escolha, à mãe que precisa de atendimento médico, por exemplo, qual das instituições lutará pela implementação das políticas públicas que lhe são caras; cidadãos querem escola, merenda, transporte, saúde, saneamento básico…. Em outras palavras, a sociedade quer resultados, algo que eles possam tocar, utilizar, enfim, atender concretamente suas necessidades.
Encastelar instituições e criar mecanismos que dificultem a punição de agentes ímprobos corresponderia a retrocesso não mais admitido pela sociedade brasileira, num verdadeiro “efeito cliquet”. Qual o sentido de, apurando-se a existência de ato de improbidade, não conferir à própria Administração Pública a prerrogativa de oferecer, desde logo, a respectiva ação de improbidade? Qual o sentido de condicionar o controle de políticas públicas a órgãos externos quando a própria entidade já identificou o ilícito? Qual o sentido de incrementar a vulnerabilidade e insegurança jurídica ao desprestigiar a regulação de setores e atividades por agência governamentais, condicionando o acerto ou adequação de condutas ao entendimento de órgão externo, muitas vezes desprovido da especialização e conhecimento técnico necessários ao correto entendimento da causa, e que baseia sua atuação na autonomia e independência funcional de seus membros?
Isso acabaria por ensejar não só o atraso na punição dos envolvidos, diante do célere prazo prescricional corrente, mas também ocasionar situações esdrúxulas. Sem deixar de mencionar a “Teoria Chevron”, não se pode olvidar o risco de se atribuir a defesa do interesse público a um só órgão ou entidade.
A esse respeito, cita-se, inclusive, caso concreto ocorrido em SP, relativo à defesa de interesses difusos e coletivos, em que, ajuizada ação civil pública referente a danos ambientes relativos à poluição ocasionada pelas aeronaves durante pousos e decolagens no Aeroporto Internacional de Guarulhos/SP, determinada empresa celebrou Termo de Ajustamento de Conduta com o Ministério Público local, com vistas à sua exclusão da ação civil pública, assumindo a responsabilidade pelo plantio de espécies nativas em uma área localizada no…. Paraná! Muito embora a independência e autonomia funcionais do órgão ministerial permitam, legalmente, esta conduta, de rigor perguntar se isso, de fato, atendeu ao interesse público em pauta.
O mesmo raciocínio aplica-se às ações de improbidade administrativa, bem como ao equivocado raciocínio de que somente ao Ministério Público deve ser outorgada a possibilidade de transação nestas hipóteses. Abusos podem ocorrer em qualquer instituição, seja uma ou cem legitimadas a atuar. De fato, importa a atuação de mecanismos de controle, check and balances, cuja maior eficiência se dá, sem dúvida alguma, a partir do momento em que todos os órgãos envolvidos possam atuar de modo coordenado.
A “accountability” horizontal hoje é ideário defendido por todos os que estudam e intentam reduzir a corrupção em nosso país, implicando maior transparência na defesa dos interesses públicos, aliando a desconcentração do controle à imperiosa necessidade de coordenação de trabalhos.
Pensar o contrário seria admitir, erroneamente, que somente a um único órgão ou Poder seria permitido estabelecer a palavra final sobre o acerto ou não de uma determinada conduta, bem como se ela configuraria ou não ato de improbidade administrativa, a despeito, inclusive, do entendimento técnico especializado de, por exemplo, agências reguladoras, ou mesmo do próprio interesse público.
Quais, portanto, os verdadeiros interesses ocultos na tramitação do projeto de lei que pretende subtrair da Advocacia Pública Federal prerrogativa tão cara à sociedade brasileira? Como aqui se pretendeu apenas demonstrar a atual legitimidade para ajuizamento de ações de improbidade e seu efetivo exercício, talvez seja mais apropriado deixar esta discussão para uma próxima conversa.
* Procurador federal, membro da Equipe de Trabalho Remoto de Ações de Improbidade Administrativa (ETR-Improbidade).
Leia mais textos na coluna da Anafe:
> A representação judicial e extrajudicial de agentes públicos pela AGU e as MPs 870 e 872
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