Afonso Morais, especial para o Congresso em Foco
A pedido do ministro dos Esportes, Orlando Silva, e para fazer média com os times de futebol de seus estados, os senadores Álvaro Dias (PSDB-PR) e Demóstenes Torres (DEM-GO) acabaram permitindo que a Lei Geral do Esporte, a chamada Lei Pelé, fosse aprovada na última quarta-feira (9) passando por cima de irregularidades regimentais. Duas das quatro audiências públicas convocadas para discutir a lei aconteceram fora do Congresso Nacional, nos estados de origem de Álvaro Dias e Demóstenes – Paraná e Goiás -, o que é vedado pelo Regimento Interno do Senado Federal.
O regimento veda essa possibilidade por um motivo claro. Fora do Congresso, tais audiências não tiveram a presença de outros senadores além dos próprios Álvaro Dias e Demóstenes. Ou seja: os senadores perderam duas oportunidades de debater melhor o projeto. De acordo com especialistas, as duas audiências não tiveram amparo legal. “O resultado das duas reuniões é questionável. Um dos princípios regimentais diz que nem acordo de líderes pode se sobrepor ao regimento da Casa. A previsão regimental resguarda apenas as Comissões Parlamentares de Inquérito e as externas. A CCJ deveria ter levado essa decisão à Mesa Diretora e ao Plenário”, explica o especialista em Processo Legislativo e professor de Regimento Interno do Senado do Gran Cursos, Jefferson Ribeiro.
Segundo o artigo 106 do Regimento Interno, “as comissões reunir-se-ão nas dependências do edifício do Senado Federal”. Pelas atas consultadas pelo Congresso em Foco, o primeiro encontro foi realizado no dia 26 de abril, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil, em Curitiba (PR), estado de origem do senador Álvaro Dias. A terceira reunião aconteceu em 4 de maio, no auditório da Universidade Paulista (UNIP), em Goiânia, domicílio eleitoral de Demóstenes Torres. Para a realização dos encontros, os dois senadores apresentaram requerimentos que foram aprovados na CCJ. O que não consta nas atas, no entanto, é o teor das discussões e o que foi tratado pelos convidados acerca do assunto. Muito menos a presença nem a justificativa de ausência dos senadores membros da CCJ. Apenas a segunda e última audiências foram devidamente realizadas no Congresso Nacional.
Sem os debates prévios, a capacidade de análise dos senadores fica comprometida e, consequentemente, os projetos acabam apreciados e votados sem a consistência desejada. Outro ponto é a necessidade de os senadores membros da CCJ terem de justificar a ausência sob pena de tomarem falta. E o quorum mínimo necessário para a audiência ficou também comprometido. O artigo 108 diz que “as comissões reunir-se-ão com a presença, no mínimo, da maioria de seus membros”. No entanto, apenas Álvaro Dias e Demóstenes Torres compareceram aos encontros. “A audiência pública é objeto de uma reunião da comissão. Sendo assim, o senador que não comparecer deve receber falta”, diz um especialista que conhece profundamente o Regimento Interno do Senado e pediu anonimato. Jefferson ratifica e complementa: “os senadores que receberem falta poderão contestar a ausência”.
Clubes goianos
A reunião realizada na capital goiana suscita ainda mais dúvidas.Para a audiência, foram convidados apenas o ministro do Esporte, os presidentes dos clubes de futebol de Goiás, o governador do Estado, Alcides Rodrigues, e o prefeito de Goiânia, Paulo Siqueira Garcia. Orlando Silva, o prefeito e o governo faltaram (Rodrigues e Siqueira mandaram representantes). Assim, excluindo-se o fato de Goiânia ser o domicílio eleitoral de Demóstenes Torres, qual foi o critério de escolha da capital goiana para acolher a audiência pública, já que os times goianos têm pouca expressão no cenário nacional?Os outros estados que têm equipes com maior tradição no futebol brasileiro não teriam também o direito de opinar e apresentar sugestões para enriquecer o debate?
O senador de Goiás responde: “os times goianos têm o mesmo direito de debater o projeto como qualquer outro, e foi o ministro do Esporte que pediu para levar a discussão para Goiânia. Além disso, nenhum outro estado requereu uma audiência pública para discutir o projeto”. Questionado sobre o Regimento Interno impedir a realização de audiências fora do Senado, o senador goiano afirma que no capítulo que trata sobre requerimentos haveria um artigo que abriria essa possibilidade. Mas a reportagem não encontrou qualquer menção a esse respeito.
Um dos diretores do Senado Federal consultados pela reportagem confirmou a constatação e, sob a condição de não ser mencionado, completou: “os secretários das comissões são orientados para não organizarem audiências públicas fora das dependências do Senado. Mas se trata de uma casa política e os interesses de alguns, às vezes, se sobrepõem às normas da Casa. A única comissão autorizada a realizar reuniões fora das dependências do Senado é a Comissão Mista de Mudanças Climáticas, porque consta no Regimento Comum do Congresso Nacional e há uma resolução neste sentido”.
Para dirimir qualquer dúvida, o professor Jefferson Ribeiro cita ainda o artigo 412 do Regimento Interno do Senado e afirma que tais dispositivos poderiam ser evocados até para anular os resultados das duas reuniões. “Basta consultar alguns itens deste artigo para se constatar a irregularidade. No inciso terceiro, por exemplo, diz que ‘há impossibilidade de prevalência sobre norma regimental de acordo de lideranças ou decisão de Plenário, exceto quando tomada por unanimidade mediante voto nominal, resguardando o quorum mínimo de 3/5 dos votos dos membros da Casa’. E o quarto diz que haverá ‘nulidade de qualquer decisão que contrarie norma regimental’’’.
O senador Álvaro Dias confirmou que o pedido de transferência das reuniões partiu de Orlando Silva e lembra que a realização de audiências públicas fora do Senado é “prática habitual”. O parlamentar defendeu que o debate em outras unidades da Federação é uma maneira de aproximar o Parlamento da sociedade. “Além de reduzir os custos da audiência”, ressalta. Para o senador paranaense, trazer convidados de fora de Brasília é mais oneroso do que levar apenas um assessor e um parlamentar para outro estado.
Outra questão que chama a atenção foi a retirada da responsabilidade da comissão de mérito para debater o tema, já que a CCJ tem como prerrogativa discutir apenas os aspectos jurídicos e legais e não o mérito das propostas. Dessa maneira, a matéria deixou de ser apreciada no fórum apropriado – a Comissão de Educação, Cultura e Esporte – onde poderia haver um debate mais amplo e aprofundado sobre o assunto.
Mas um acordo de líderes com o objetivo de acelerar as discussões e tramitação do substitutivo da Lei Pelé no Senado determinou a apreciação em sessão conjunta formada pelas comissões de Constituição, Justiça e Cidadania, de Assuntos Econômicos, de Assuntos Sociais e Educação, Cultura e Esporte.
O ministro Orlando Silva está na África do Sul para participar da abertura da Copa do Mundo e sua assessoria de imprensa não retornou as ligações do Congresso em Foco. O site também tentou, sem sucesso, contato com a secretária geral da Mesa do Senado, Claudia Lyra.
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