Celso Lungaretti*
“Vocês vão ver como é
Didi, Garrincha e Pelé
Dando seu baile de bola
Quando eles pegam no couro
Nosso escrete de ouro
Mostra o que é nossa escola
Quando a partida esquentar
E Vavá de calcanhar
Entregar a pelota a Mané
É Mané Garrincha, Didi,
Didi diz ‘é por aqui’
Aí vem o gol do Pelé”
(Jackson do Pandeiro)
O Brasil era o favorito do Mundial 1962, no Chile. Mas a contusão de Pelé, logo na segunda partida, foi um balde de água fria no nosso ânimo.
Antes, a Seleção aplicara protocolares 2×0 num México cujo único destaque era o goleiro Carbajal, por haver disputado muitas Copas (acabaria fechando a conta em cinco).
Contra a Checoslováquia, o rei tentou um chute de fora da área, que foi à trave enquanto ele ia ao chão, abatido.
A aplicação tática do adversário dificultava as oportunidades de gol e os dois melhores arremates brasileiros morreram nas traves. 0x0.
A vitória contra a Espanha, no jogo seguinte, tornou-se obrigatória para o Brasil seguir adiante na Copa.
Foi um jogo épico, contra um adversário forte e que contava com o mito Puskas (húngaro que, após ser o grande destaque da Copa de 1954, trocara de cidadania).
Chutando da meia lua, Adelardo colocou a Espanha na frente.
Amarildo, o substituto de Pelé, aproveitou centro rasteiro de Zagalo e empatou.
O grande Gilmar fez a maior defesa que já vi na vida. Foi socar um cruzamento quase na marca do pênalti. Ele e o atacante trombaram/tombaram. O magnífico ponta-esquerda Gento pegou o rebote, chutou por cobertura e saiu para comemorar o gol.
Só que o caído Gilmar, como um golfinho de shows aquáticos, conseguiu projetar-se diretamente do solo, em sentido vertical, e dar um tapa na bola. Inacreditável.
Parêntesis 1: Gento, além de ser um fora de série, tinha muito caráter. Certa vez, incumbido de cobrar um pênalti inexistente para o Real Madrid, chutou na direção da bandeira de escanteio, recusando-se a tirar proveito do erro da arbitragem.
Parêntesis 2: também errou a arbitragem de Brasil x Espanha, ao não assinalar um pênalti cometido por Nilton Santos quando o jogo ainda estava 0x1. Marcou fora da área a falta ocorrida dentro.
A enciclopédia usou de malandragem, dando um passo dissimulado à frente para confundir o juiz, que estava vindo conferir de perto o local da infração. Teria conseguido o Brasil sair do 0x2?
Parêntesis 3: então com 11 anos, eu não entendia por que o placar do estádio de Viña del Mar estampava a frase “porque nada tenemos, lo haremos todo”.
Só bem mais tarde vim a saber que um forte terremoto destruíra a infraestrutura futebolística do Chile, dois anos antes do Mundial, mas o grande dirigente Carlos Dittborn conseguira evitar a mudança de sede, pronunciando então essa frase que motivou sua gente a, com um esforço descomunal, conseguir reerguer tudo em tempo hábil.
Parêntesis 4: tratou-se da primeira Copa do Mundo cujas partidas foram integralmente exibidas no Brasil, em teipe. Passavam na noite do dia seguinte e um locutor agradecia a gentileza do comandante fulano, piloto da Varig, que havia trazido a fita no seu voo.
As duas emissoras que transmitiam futebol, a Record e a Tupi, optaram pelo revezamento: cada equipe se incumbia da locução/comentários de um tempo da partida.
Então, era o chatíssimo Walter Abrão quem resmungava, no finalzinho da partida, quando Garrincha não atava nem desatava na ponta: “É muito egoísmo, ficar prendendo a bola numa hora destas, em vez de passar para um companheiro!”.
Foi a maior queimada de língua que vi na vida. Num único mas decisivo lampejo de gênio, Mané se livrou dos adversários, atraiu toda a marcação (inclusive o goleiro) e deu um centro milimétrico para Amarildo. O possesso nem precisou pular, só empurrou a bola para as redes.
Apesar do folclore, Garrincha não era nenhum desmiolado em campo. Tanto que, quando Pelé se contundiu, a ficha logo caiu para o Mané: era a ele que competia liderar o ataque brasileiro no restante do Mundial.
Então, às suas jogadas desconcertantes, mas nem sempre objetivas, ele acrescentou uma inusitada dose de pragmatismo: passou a priorizar o gol.
Nas quartas-de-final contra a Inglaterra, fez um cabeceando do meio da área e outro, sensacional, chutando da intermediária, quase uma folha seca ao estilo de Didi (só que com a bola rolando!). 3×1.
Na semifinal contra os anfitriões, o inverossímil: pegou um rebote na entrada da área e, com a perna cega que só servia para descer do bonde, acertou um chute perfeito, no ângulo.
De quebra, outro gol de cabeça, quase igual ao da partida anterior. E o Brasil despachou o Chile: 4×2.
Parêntesis 5: o Mané foi expulso no fim da semifinal, mas o jeitinho brasileiro fez a diferença nos bastidores. O árbitro, providencialmente, não entregou a súmula a tempo e Garrincha pôde disputar a final.
A Checoslovaquia, com seu bem montado esquema de formiguinhas, foi o adversário – mas a sorte, dessa vez, lhe seria madrasta.
Os meio-campistas Masopust e Zito, surgindo como elementos-surpresa, marcaram.
Amarildo, tentando um cruzamento da linha de fundo, viu, com seu espanto transparecendo no olhar, a bola enganar o goleiro Schroiff, que se posicionara para interceptar o centro. Nem ele acreditou no gol que marcara.
E o empolgante Djalma Santos alçou a bola despretensiosamente para a área. O pobre Schroiff, melhor arqueiro da Copa, estava num dia pra lá de infeliz. Ofuscado pelo sol, soltou infantilmente a pelota no pé de Vavá, que não perdoou. 3×1.
Parêntesis final: chefiando a delegação, o empresário paulista Paulo Machado de Carvalho foi fundamental para as conquistas de 1958 e 62.
Sob a conturbada liderança dos cartolas cariocas, o Brasil dera vexame em 1950, quando os dirigentes não só embarcaram no “já ganhou”, como deixaram que ele contagiasse os jogadores, chegando ao cúmulo de recomendarem ao limitado zagueiro Bigode que não abrisse a caixa de ferramentas na final, pois o mundo todo estaria olhando.
Com Bigode domesticado, o ponta Gighia fez a festa, levando o Uruguai à vitória.
E deu vexame em 1954, perdendo não só o jogo, mas também a esportiva, contra a Hungria, que era realmente melhor.
Aí entrou Paulo Machado de Carvalho, com um enfoque mais profissional do futebol e uma habilidade imensa na motivação dos jogadores.
P. ex.: ao ficar sabendo que Didi estava apático porque sentia falta da caninha habitual, o marechal o levou ao bar e, para surpresa do jogador, chamou duas pingas.
Didi hesitou, mas o velho disse: “Comigo você pode. Toma!”.
Copo vazio, ele foi além: “Bebe a minha também!”.
Finalmente: “Agora, quando entrar em campo, jogue tudo que sabe! Nós precisamos de você”.
Assim era o homem.
Então, não foi surpresa que, depois de criticadíssimo pela equipe esportiva da rádio Bandeirantes (SP) ao longo de toda a campanha, ele desse o troco quando um pouco perspicaz repórter da emissora o foi entrevistar no vestiário festivo da conquista do bi.
Ele só disparou uma frase: “Engoliu mais essa, Pedro Luís?”
O veterano locutor discursou durante minutos, criticando a mesquinhez de quem aproveitava um momento de júbilo nacional para vinganças pessoais.
Em vão: tinha ido a nocaute e, como os pugilistas sonados, não se dera conta.
*Celso Lungaretti é jornalista e escritor. Mantém os blogues
http://naufrago-da-utopia.blogspot.com/
http://celsolungaretti-orebate.blogspot.com/
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