Rodrigo Martini*
Nas últimas semanas, a mídia conferiu substantivo destaque ao caso envolvendo uma professora de sociologia, moradora de São José do Rio Preto, interior de São Paulo, que, aprovada em concurso público no último mês de novembro, teve seu contrato indeferido pela Secretaria de Estado da Educação por motivo, no mínimo, pitoresco: excesso de peso.
Outro professor de sociologia, proveniente de Jacareí, também viu impedida a sua contratação em virtude da compleição física de que dispõe. Ambos já atuavam, como professores temporários, na rede estadual de ensino, e somente após a aprovação em concurso, e em vias de adquirir estabilidade no serviço público, tornaram-se, de repente e não mais que de repente, “inaptos” ao exercício do cargo por eles pleiteado.
Os exemplos supramencionados referem-se aos professores Bruna Giojiani de Arruda e Ricardo Ferfolglia Honório, e as coincidências que os unem vão para muito além do curso que ministram. Uma reflexão pode ser realizada a partir destes dois eventos.
O governo paulista, que, apenas para ficar em três exemplos, busca, dia a dia, explicações minimamente convincentes para escândalos político-administrativos e econômicos, como os da Siemens, da Alstom e do Rodoanel, deverá, desta feita, convencer a opinião pública quanto à legalidade (ou ilegalidade) de determinados atos que pratica nos concursos públicos que promove. Tentando ser mais realista que o rei, o governo paulista, ao justificar seus descalabros administrativos, visa a demonstrar que fala em nome do interesse público. Estaria a administração estadual de fato preocupada com as finanças da economia mais pujante da federação?
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Tal tarefa pode custar caro dos pontos de vista social e político, sobretudo se o preço a pagar exija a inobservância de uma cláusula pétrea da Carta Cidadã: o caput do artigo 5º da Constituição Federal –“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.”
Em nota, o DPME (Departamento de Perícias Médicas do Estado de São Paulo) argumenta que, devido ao peso, os candidatos poderiam desenvolver doenças e, em razão disso, prejudicar o serviço público. Aduz, ainda, que as reprovações atendem ao interesse público e não estão fundamentadas em preconceito, mas em critérios técnicos e científicos previstos na legislação, em especial no Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado (Lei nº 10.261/1968, com nova redação dada pela LC 1.123/2010) e em normas legais estabelecidas pelo Ministério da Saúde e pela OMS (Organização Mundial da Saúde).
Dotado de invejável capacidade mediúnica e sobrepondo um Estatuto ao ordenamento jurídico máximo do país, o Estado antecipa-se às hipotéticas catástrofes do mundo natural e assevera que tais professores não cumprirão o tempo minimamente desejável de serviço público em decorrência de uma suposta fragilidade que a obesidade lhes imputaria.
Não parece esta a explicação mais coerente. O artigo 37, II, da Constituição Federal estabelece que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas, ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei […]. A aprovação dos professores, nesse sentido, é incontroversa e, ademais, ratifica sua aptidão técnica ao desempenho da atividade docente.
Há profissões, é verdade, em que a excelência física constitui critério determinante ao exercício da função, o que, em absoluto, não se verifica no caso dos professores. A obesidade mórbida, ainda que tipificada pelas autoridades científicas como doença/patologia, não impede o cidadão de trabalhar em atividades compatíveis com o campo intelectual, por exemplo. O Estatuto do Servidor Público não prevê, em momento algum, qualquer restrição referente a peso corporal.
Se o raciocínio primário adotado pela Administração Pública paulista se estendesse a outras situações concretas, fumantes e portadores de doenças hereditárias, por exemplo, jamais poderiam exercer, competentemente, funções públicas. O Estado, considerando incapazes os obesos, deveria, pois, aposentá-los por invalidez, o que, por extensão, torná-los-ia incompetentes ao exercício de quaisquer funções outras na iniciativa privada.
Não obtendo sucesso na esfera administrativa, as pessoas diretamente envolvidas neste caso evidente de preconceito e discriminação, haverão de provocar o Poder Judiciário, buscando a tutela de direitos fundamentais violados e requerendo, inclusive, o reparo pelos danos morais de que provavelmente foram vítimas.
O Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) requereu explicações junto ao governo do Estado e à Secretaria de Estado da Educação e promete patrocinar ações judiciais em prol de seus filiados. Por ora, não há qualquer posicionamento definitivo da parte dos órgãos administrativos competentes.
O Estado de São Paulo, na contramão dos princípios democráticos e republicanos, relega a segundo plano critérios como o preparo intelectual e a competência profissional de professores aprovados em concurso público. Com isso, priva a sociedade do acesso a serviços públicos de qualidade e ministra uma péssima lição a crianças e jovens: a intolerância.
Por qual motivo, quando da inscrição, não se perguntou aos candidatos a respeito de sua altura e massa corpórea? O impedimento parece ter surgido tão somente após a aprovação, com as explicações padronizadas e repletas de tecnicismos do órgão estatal.
O DPME, ignorando princípios constitucionais básicos, considera desiguais os professores obesos pelo simples fato de possuírem IMC (Índice de Massa Corpórea) acima do desejável. E justamente em um momento no qual a sociedade civil traz à baila discussões do mais alto relevo, tais como o combate ao racismo (etnocentrismo), à homofobia e a outras formas de discriminação.
A Lei 8.112/90, aqui utilizada em analogia, disciplina o Regime Jurídico dos Servidores Públicos Civis da União estabelecendo como um dos requisitos fundamentais à investidura em cargo público a “aptidão física e mental” (artigo 5.º, VI).
O critério é objetivo, e a referida aptidão deve ser analisada de acordo com cada situação fática. A tarefa de um professor é preponderantemente intelectual, não podendo a obesidade ser posta como critério a determinar, no certame, a exclusão de um candidato. Nesse sentido, a atuação do Estado ignora um dos mais sagrados princípios jurídicos: o da igualdade.
Os agentes públicos responsáveis por essa inadmissível decisão parecem desconhecer o belíssimo conteúdo do artigo 3º da Constituição, segundo o qual é objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, com a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade ou quaisquer outras formas de discriminação. Caberá ao Judiciário, uma vez acionado, corrigir tais distorções, restabelecendo os princípios inspiradores de nossa Carta Magna.
Ao se acolher a posição do Estado de São Paulo, por meio do DPME e de chancela da Secretaria de Estado da Educação, abrir-se-á um perigoso precedente jurisprudencial: legisladores, juízes, promotores, serventuários, membros do Executivo e quaisquer outros agentes públicos ou políticos que se encontrem acima do peso – e que não são poucos atuando em nome da coisa pública – deverão, em princípio, ser exonerados do funcionalismo público, ou eliminados previamente do concurso/eleição.
Se concursos houvesse para cantor, humorista ou comunicador, figuras como Tim Maia, Jô Soares e Fausto Silva, para não se estender em tantos mais exemplos cabíveis, não encontrariam, sob o honorável argumento do bem do serviço público, qualquer espaço para oferecer ao povo sua arte e sua poética. Rapidamente o Estado teria uma explicação para as eliminações. Azar o nosso…
* Rodrigo Martini é advogado e sócio do escritório Rodrigues Jr. Advogados –rodrigo.martini@rodriguesjr.com.br
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