Carlos Alexandre da Cunha*
A Economia, assim como as demais ciências, especialmente as que guardam uma relação estreita com as questões sociais, assumem tendências de tempos em tempos, motivadas muitas vezes por contextos restritos à realidade socioeconômica de um determinado país. Disseminar um modelo econômico sem uma avaliação criteriosa de compatibilidade, é temerário. As especificidades de cada país têm que ser levadas em conta, sob pena de seu fracasso. Um modelo que se mostre apropriado a uma nação, não necessariamente se mostrará a uma outra, especialmente se houver distâncias significativas nas questões de cunho social. Em caso de insistência, a sociedade pode sofrer consequências danosas.
>Novo olhar do Congresso sobre o transporte público
Tomamos como exemplo a tendência do ultraliberalismo econômico, que pregava o Estado mínimo e, ainda, que o mercado tinha a capacidade de se autorregular. Esse modelo surgiu com a Escola de Chicago, nos anos 50. Foi adotado principalmente na Inglaterra com Margaret Thatcher e, posteriormente, nos Estados Unidos com Ronald Regan, entre outras experiências pontuais mal sucedidas, por terem feito vistas grossas às especificidades locais, como o Chile de Pinochet, que recentemente foi agraciado com o título de país com maior desigualdade social. Curiosamente, apesar do desuso, e da comprovada ineficácia desse modelo nos tempos atuais, especialmente em países em desenvolvimento, o Brasil, e Brasília a reboque, vêm estreitando seus laços com ele.
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Esse modelo prosperou nos Estados Unidos e na Inglaterra até que a globalização se alastrou. A partir de então, os mercados tiveram que se abrir, a concorrência se acentuou e as alternativas para que as margens de lucro se mantivessem nos patamares de outrora se tornaram cada vez mais desesperadoras, desmedidas.
Ocorre que, fazem parte do mercado, os serviços essenciais ao bem estar social. Tais serviços devem ser, por princípio, universais e de qualidade. No entanto, se universalizar e garantir a qualidade implicar em comprometimento dos lucros, o mercado deixa de atender parcela da sociedade, passa a oferecer serviços de baixa qualidade ou, em última instância, abre mão desse quinhão, deixando os mais desfavorecidos à revelia.
PublicidadeMas o mercado é provocado a nunca abrir mão de um negócio, é quase uma questão de honra. O Estado então, com toda a sua benevolência, assume uma condição de penúria, e usa da criatividade para salvar o mercado, com a justificativa que os serviços essenciais não podem deixar de ser prestados à sociedade. A onda da vez para garantir a participação do setor privado na prestação de serviços públicos, com um certo retardo em nível nacional, são as concessões, especialmente aquelas no modelo de Parceria Público Privadas – PPP. Os contratos que regem essas parcerias preveem cláusulas, de maneira velada, com pouca publicidade, que garantem os lucros ao mercado, por meio de repasses vultosos concedidos pelo Estado, os tais subsídios, que quando são destinados às empresas públicas são taxados como prejuízos. Para o setor privado, recebem um tratamento mais generoso, são repasses voltados a mitigar os riscos e garantir o equilíbrio-econômico e financeiro das empresas privadas contratadas.
É exatamente esse o cenário que temos observado tanto em nível nacional e em na Capital Federal.
Os serviços de transporte de passageiros sobre trilhos têm sido tratados de acordo com o cenário supracitado. Mas há um agravante, todos os sistemas de transporte sobre trilhos no mundo, sejam eles públicos ou privados, recebem necessariamente repasses governamentais. Isso se dá, em grande parte, aos altos custos fixos presentes em sistemas dessa natureza. Uma operação metroviária, independentemente do número de passageiros transportados, seja nos horários de pico ou nos vales, compromete cerca de 80% de seus custos totais.
Importante observar que, os repasses para as operadoras privadas, ao contrário do que é propagado, são maiores que os repasses às operadoras públicas. Isso porque, nos planos de negócios da operadora privada, são computados custos que não constam da contabilidade das operadoras públicas, tais como: lucro, mitigações de riscos e outros, sim, genérico dessa forma. Além do que, os encargos sociais devidos aos empregados das empresas privadas podem alcançar quatro vezes aqueles devidos aos empregados das empresas públicas. Essa conta também cai no colo do Estado. É fácil deduzir que, considerados salários e encargos, o empregado da operadora privada, pago indiretamente pelo Estado por meio dos repasses, sai muito mais caro que o empregado da operadora pública. Sugiro um passeio no contrato de concessão da Via Quatro do Metrô de São Paulo, no anexo referente ao plano de negócios. Os repasses atualizados pela Tarifa de Remuneração são de saltar aos olhos.
Mas esqueçamos os números. Os direitos sociais estão acima de qualquer balanço contábil. Nossa carta Magna, concebida em alinhamento à condição socioeconômica presente até os dias atuais, ou seja, um país ainda em desenvolvimento, com evidentes desigualdades sociais, traz, em seu Artigo 6º, as garantias sociais que devem ser providas pelo Estado. Tais garantias representam os recursos necessários capazes de garantir um mínimo de dignidade a cada cidadão brasileiro. Segue o Artigo 6º com a redação alterada a partir de 2015, incluindo o transporte como direito social: São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. Considerando os direitos elencados e, retornando aos números, pergunta-se: as contas dos hospitais, segurança e escolas públicas têm necessariamente que fechar? A resposta, assim como para os sistemas de transporte público é: óbvio que não!
Sem qualquer intenção de relativizar cada um dos direitos sociais dispostos no Artigo 6º da Constituição, apresenta-se a seguinte reflexão: De que adianta o Estado prover educação, saúde, trabalho, lazer, etc, se não forem dadas as condições para que todo cidadão possa usufruí-los? O transporte público é o vetor de acesso a cada um desses direitos, garantindo a eficácia da aplicação daquele Artigo Constitucional e a promoção da equidade social.
Portanto, considerando os aspectos econômicos e sociais, é indubitável que delegar serviços públicos, especialmente aqueles relacionados aos Direitos Sociais, caracteriza um acinte às contas públicas e à dignidade do cidadão.
As economias desenvolvidas por todo o mundo vêm nos apresentando um processo de reestatização de seus serviços públicos. Acompanhá-las às cegas, como já dito, pode ser um erro. Mas aprendermos com seus erros, ao contrário, é uma atitude sábia. Não cedamos à sede das empresas privadas em detrimento do bem estar social. Ainda há tempo para um lampejo de consciência. Melhor que o bom senso seja despertado de forma espontânea. Se despertado pelas vias institucionais destinadas à garantia da legalidade, fiscalização e ao controle, pode ser um pesadelo mais à frente àqueles que insistirem no erro.
* Carlos Alexandre da Cunha, engenheiro mecânico, mestre em planejamento em transporte público.
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