No último dia 28, o Plenário da Câmara dos Deputados aprovou o parecer da deputada Nely Aquino (Podemos-MG) ao Projeto de Lei Complementar nº 164, de 2012, da deputada Elcione Barbalho (MDB-PA).
Originalmente, o PLP 164/2012 pretendia alterar o art. 18 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a Lei de Responsabilidade Fiscal, para excluir do cômputo da despesa com pessoal e encargos, para fins de cumprimento dos limites fixados pela lei para os entes federativos, os encargos sociais e contribuições recolhidas pelo ente às entidades de previdência.
Quanto a essa pretensão, a Lei Complementar nº 178 já havia alterado o art. 19 da LRF, em seu §1º, inciso VI, para determinar a exclusão, do cálculo do percentual de comprometimento da receita corrente líquida com pessoal e encargos, das despesas com inativos e pensionistas de todos os entes federativos, ainda que pagas por intermédio de unidade gestora única ou fundo previsto no art. 249 da Constituição Federal, quanto à parcela custeada por recursos provenientes: a) da arrecadação de contribuições dos segurados; b) da compensação financeira de que trata o § 9o do art. 201 da Constituição. Assim, o valor da contribuição descontada dos servidores não seria computado, resultando em uma redução da base de cálculo. Contudo, a contribuição dos entes estatais para o custeio da previdência dos servidores continuava a ser considerada, visto ser, efetivamente, “encargo”, ainda que classificado como despesa financeira, e não despesa primária.
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Porém, após 12 anos de tramitação, o projeto de lei sofreu alteração significativa ao ser aprovado pelo Plenário da Câmara dos Deputados.
O texto aprovado, na forma do substitutivo da relatora, passou a alterar o art. 19, de forma a incluir como despesas que não serão computadas para fins de apuração do limite de despesas com pessoal e encargos as despesas classificadas como “Outras Despesas de Pessoal” relativas ao “fomento público de atividades do terceiro setor por meio de subvenções sociais” e no caso de “contratação de empresas, de organizações sociais, de organizações da sociedade civil, de cooperativas ou de consórcios públicos, quando fique caracterizada prestação de serviços.”
Curioso observar que, apesar de a nova redação referir-se, também, a despesas realizadas com o pessoal de “empresas” contratadas para a prestação de serviços, o substitutivo não revogou o §1º do art. 18 da LRF, que prevê que “os valores dos contratos de terceirização de mão-de-obra que se referem à substituição de servidores e empregados públicos serão contabilizados como “Outras Despesas de Pessoal”.
Resulta, assim, uma contradição no próprio texto, pois os contratos de terceirização de mão de obra, pelo menos em parte, continuarão a ser contabilizados para fins do teto de gastos com pessoal e encargos. Mas as despesas com pessoal de organizações sociais, organizações não-governamentais, organizações da sociedade civil de interesse público, que firmam termos de parceria ou contratos de gestão com o ente federativo, ou mesmo empresas contratadas para a prestação de serviços, não serão computadas. E até mesmo, nos termos do substitutivo aprovado, despesas realizadas por meio de consórcios públicos, previstos no art. 241 da Constituição e regulamentados pela Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005, e que podem ser constituídos para a gestão associada de serviços públicos, deixarão de ser computadas.
Segundo o Relatório de Gestão Fiscal (Foco Estados + Distrito Federal) do 1º Quadrimestre de 2024, elaborado pela Secretaria do Tesouro Nacional, pelo menos 14 Estados tiveram despesas com pessoal e encargos de mais de 50% da Receita Corrente Líquida; desses, pelo menos 4 teriam despesas acima do limite prudencial (57%), e um, acima do limite máximo permitido (60%). Outros quatro estados estariam com gastos de 50% da RCL.
Dados da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) apresentados no Estudo Técnico – Crise fiscal nos Municípios brasileiros, de 2024, indicam que 28% dos municípios já ultrapassavam em 2023 o limite prudencial da despesa com pessoal e encargos; mas 57% se achavam abaixo do limite de alerta (48,6% da RCL), e 15% estavam entre o limite de alerta e o limite prudencial. Assim, em 2023, comparativamente com 2022, uma maior quantidade de municípios passou a se enquadrar nos limites de Alerta, Prudencial e Máximo da RCL com gastos de pessoal. E o percentual de municípios que superaram o limite máximo (54% da RCL) apresentou elevação, passando de 11% em 2022 para 14% em 2023 (565 e 691 municípios, respectivamente).
Segundo o “Panorama das Parcerias com Entidades do Terceiro Setor – PESQUISA CNM”, de 2024, 65,51% dos municípios mantêm instrumentos de parceria efetivados com entidades do Terceiro, e, assim, boa parte das políticas públicas, de competência orginalmente governamental, vêm sendo efetivada por meio de terceirizações. Por esse meio, o poder público local presta serviços à população, com foco principal em serviços de assistência social, saúde e educação.
O Projeto de Lei Complementar nº 164/2012, portanto, contribui para “desafogar” a contabilidade dos entes federativos, pois permitirá que parcela expressiva de despesas deixe de ser computada, para os fins dos limites de despesa da LRF, reduzindo-se os riscos de que, no curto ou médio prazos, precisem ser adotadas medidas de ajuste, como a própria demissão de servidores estáveis, que é permitida pelo art. 169 da Constituição, nessas situações.
Porém, o projeto traz, ao mesmo tempo, uma grave ameaça de ampliação da terceirização, precarização e contratação de pessoal por meio de entidades privadas, fragilizando a relação de trabalho entre os servidores – que, contratados por essa via, deixam de ser “servidores públicos” – e rompendo com as regras relativas ao regime jurídico único, política remuneratória, isonomia e estabilidade.
Vale dizer: mais do que atenuar a “contabilidade” dos entes, o que o PLP 164 faz é estimular, ainda, mais, o uso de “termos de parceria”, “contratos de gestão”, terceirização e consórcios, e mesmo os chamados “serviços sociais autônomos”, para burlar as regras que deveriam reger o serviço público de maneira unificada e transparente.
Ao incentivar essa forma de prestação de serviços à sociedade, excluindo da contabilidade a despesa com eles realizada, ainda que para suprir demandas que deveriam ser atendidas por servidores, o que o PLP faz é antecipar os efeitos da própria EC 32, de 2020, a “reforma administrativa” de Bolsonaro e Guedes, que previa a ampliação do uso de “instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos”, exceto nas atividades privativas de cargos exclusivos de Estado.
Essa discussão não é nova.
Em 2016, o Tribunal de Contas da União, em resposta à consulta do Congresso Nacional, examinou a possibilidade de celebração de contratos de gestão com organizações sociais por entes públicos na área de saúde e se a despesa com pagamento de salários nesses contratos deve constar nos limites de gastos com pessoal previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF). Ao examinar o assunto, o TCU, na ocasião, afastou a analogia entre terceirização de mão de obra e contratação de organização social, considerando que os contratos de gestão não caracterizariam terceirização de mão de obra e, assim, não se aplicaria a eles o art. 18 da LRF, que manda considera na despesa com pessoal os contratos de terceirização. Porém, na discussão do tema, o TCU apontou para os riscos da utilização abusiva desses contratos de gestão para o equilíbrio fiscal do ente federativo, pois a exclusão da despesa com esses contratos do limite de despesas poderia aumentar a margem para atingimento do limite de 60% da receita corrente líquida (RCL), que poderia ser preenchida com aumentos da remuneração de servidores, enquanto a despesa com contratos passaria a ser computada como despesa corrente a ser contabilizada nos 40% de despesas, descontado limite de gastos com pessoal.
Mas, em 2019, nos termos do Acórdão 1187/2019, do Plenário do TCU, reviu o entendimento e passou a considerar que a remuneração do pessoal que exerce atividade fim do ente público em organizações sociais deve ser incluída no total apurado para verificação dos limites de gastos com pessoal estipulados na LRF. Assim, segundo a Corte de Contas, em reforço ao entendimento então esposado pela Secretaria do Tesouro Nacional, os gastos com organizações sociais – e, por analogia, os de outras formas de “parceria” – devem ser computados como despesas de pessoal para fins de verificação do cumprimento do teto de despesas com pessoal estabelecido na LRF.
Caso aprovado pelo Senado o PLP 164, portanto, estará afastado esse entendimento, e aberta uma enorme porteira para que haja uma “maquiagem” contábil – pois a natureza efetiva da despesa não será alterada – que pode ter efeitos perversos e imprevistos, em todos os sentidos.
Trata-se, por um lado, de um incentivo à “irresponsabilidade fiscal”, mas, por outro, à precarização das relações de trabalho, ao clientelismo e empreguismo e uso indiscriminado de “parcerias” para prestar serviços públicos, em total desrespeito ao art. 37, “caput” da Constituição e suas regras relativas a contrações e remunerações, mas também ao art. 39, que dispõe sobre o regime jurídico aplicável aos servidores públicos.
Embora, para os seus defensores, seja medida “racional”, pois os prestadores de serviços não são, com efeito, “servidores”, a tese adotada pelo substitutivo joga fora o bebê com a água do banho, pois abre um caminho tanto para o descontrole da despesa, quanto para a completa burla às regras que visam assegurar a continuidade do serviço público, a sua impessoalidade e moralidade, e proteger os servidores contra desmandos, clientelismo e corrupção.
Examinando-se as planilhas de votação da matéria, observa-se que a Liderança do Governo não manifestou posição, declarando “abstenção”, e apenas o Partido Socialismo e Liberdade (Psol) percebeu os riscos embutidos na proposta. Partidos de esquerda, em regra mais preocupados com o serviço público e os servidores, entre eles o Partido dos Trabalhadores, foram sensíveis ao lobby municipalista e votaram favoravelmente ao projeto.
Ao ser remetido ao Senado, esse projeto exige um reexame cuidadoso, e, no mínimo, o seu emendamento, para estabelecer regramentos mais rígidos que impeçam o uso abusivo desses instrumentos de “parceria” com entidades privadas, assim como os riscos de um desmonte generalizado das estruturas estatais destinadas à prestação de serviços à sociedade.
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