O debate político e econômico nas últimas semanas tem se voltado para o novo programa de renda mínima que o Governo pretende implantar ao término do auxílio emergencial criado por ocasião da pandemia do coronavírus.
Cabe ressaltar que, além da situação preocupante criada pela pandemia, no que tange à renda de milhões de pessoas, o Brasil já ocupa posição bastante desagradável quando se foca na desigualdade de renda da população e no número de pessoas em situação de extrema pobreza.
O mundo tem experimentado um grau de desenvolvimento tecnológico, cultural e econômico fabuloso nas últimas décadas, mas isso não tem atingido a todas as pessoas linearmente. Os benefícios decorrentes do desenvolvimento atingem número significativo, mas ainda há milhões de excluídos; e no outro lado, há um pequeno grupo de pessoas altamente beneficiadas. Não iremos discutir as razões da desigualdade porque são muitas, no entanto, é necessário registrar que o nível educacional e o local de nascimento são dois fatores importantes.
O nível educacional envolve um fator de mérito pessoal ligado à capacidade de desempenho da pessoa, mas também um fator social externo: as opções disponíveis ao candidato. Nem todos podem sonhar em estudar nas melhores universidades. Embora as barreiras estejam caindo a cada dia, muitas ainda inviabilizam os sonhos de muitos.
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Não é apenas na falta de acesso aos melhores cursos, por grande parte da população, que a desigualdade finca suas barreiras, mas também, no local de nascimento, e aqui se fala de local como designativo das condições gerais de origem da pessoa. Ter nascido num bairro de classe alta, descender de uma das famílias dominantes economicamente faz muita diferença na vida das pessoas. Isso nada tem a ver com mérito pessoal. Nascer numa família rica dá muito mais oportunidades. Claro, outros fatores podem determinar um resultado diferente ao longo da vida, mas, em geral, uma maior gama de chances e oportunidades facilita a obtenção de uma vida mais rica economicamente e com maiores possibilidades de desenvolvimento.
Embora os partidos liberais e conservadores tenham uma propensão a enfatizar a necessidade de mérito das pessoas para poderem se dar bem na vida, mas a cada novo estudo das ciências fica mais claro que as condições de nascimento de uma pessoa influenciam tão ou mais que seus méritos pessoais.
Para pessoas adultas e saudáveis, com bom nível educacional, é possível exigir alto padrão de desempenho, mas para crianças, pessoas doentes ou incapacitadas para o trabalho, e aquelas com nível educacional muito deficiente, exigir igualdade nas condições de concorrência soa desumano.
Não podemos colocar como concorrentes numa corrida, uma pessoa que nasceu sem as pernas, com outra que possua os dois membros; salvo de conseguir obter uma prótese que tenha desempenho funcional equivalente ao das pernas originais.
Pois bem, na corrida do desenvolvimento econômico da nação temos pessoas que nasceram com acesso as duas pernas, basta treinar e sair correndo. Todavia, temos pessoas que nasceram com muitas deficiências que precisam ser corrigidas antes que elas tenham condições de competir com um mínimo de possibilidade de êxito.
A pobreza extrema leva muitas pessoas a não terem acesso a condições mínimas de saúde física e mental. Já se sabe que a alimentação deficiente nos dois primeiros anos de vida da criança pode causar danos de difícil reversão. De forma que, assegurar uma alimentação suficiente para todos deve ser a prioridade das prioridades de uma nação.
Se o país não tivesse produção agropecuária relevante, teríamos de discutir projetos de expansão para dar conta do objetivo, mas não. A produção da agropecuária brasileira, na atualidade, é exuberante, pois, além de suprir as necessidades da população nacional, permite exportar alimentos para muitos outros países.
O Brasil é autossuficiente em matéria alimentar desde a grande safra agrícola ocorrida no governo de FHC. Nas duas décadas seguintes, a produção se multiplicou de forma fabulosa. Todavia, grande parte da população não teve acesso a esse ganho de produtividade, pois, não possui recursos para adquirir os alimentos de que necessita.
Distribuir renda é uma das funções essenciais do Estado. Muitos acham que ele deveria ser neutro nesse tema, mas é puro desconhecimento da forma de seu funcionamento. O governo concede isenções fiscais para empresários e, assim, transfere renda. O governo fixa a taxa de juros e capta empréstimos no sistema financeiro e, assim, transfere renda para os agentes do mercado. O governo contrata funcionários e paga salários, transferindo renda para muitos trabalhadores. O governo contrata serviços de imprensa e transfere renda para os veículos de comunicação. Contrata obras públicas, e transfere renda para a construção civil. E não para por aí. São exemplos que não acabam mais.
Transferir renda para os trabalhadores mais pobres era comum nas frentes de trabalho no Nordeste em épocas de seca. No entanto, os serviços hoje dependem mais das máquinas, e menos da humanidade. Rodovias são construídas com grandes maquinários operados por trabalhadores qualificados, e não mais por mão de obra barata. As colheitas são realizadas por grandes colheitadeiras que colhem por centenas de trabalhadores. Os caixas eletrônicos substituíram os caixas de bancos aos milhares.
A cada dia, a produção depende menos da mão de obra humana e mais de máquinas, computadores, programas e aplicativos de informática. Nesse novo mundo, a renda decorrente do trabalho será mais rara.
É preciso desenvolver novas formas de distribuição de renda. É preciso criar mecanismos para distribuir o ganho gerado pelas máquinas e não deixar que se acumule nas mãos de poucos. O desenvolvimento cultural, científico e tecnológico é uma conquista de toda a humanidade, seus frutos não podem ficar concentrados nas mãos de uma pequena elite.
Outrora se discutia a concentração das terras, pois, numa sociedade agrícola, os frutos da terra são a riqueza dessa sociedade. Numa sociedade industrial, a riqueza vem das máquinas. Numa sociedade de serviços, vem da mão de obra. Hoje, agregamos todas essas modalidades conjuntamente. Podemos falar, também, da sociedade de comunicação, do mundo da internet e da tecnologia, muitas formas de renda advêm do controle de informações.
Sem dúvida, o mundo atual ganhou uma complexidade que outrora não existia, todavia, continuamos falhando em aspectos básicos. Estamos deixando uma parte da sociedade para trás, ou melhor, para fora de toda essa evolução. São os excluídos do desenvolvimento econômico, tecnológico e cultural.
Quem não aprender a operar um computador, pode estar condenado a passar a vida trabalhando em atividade extrativa primária. Os catadores de recicláveis são exemplos vivos dessa realidade. Fazem manualmente um trabalho que daqui a pouco será substituído por máquinas, e eles se transformarão em milhares de desempregados sem qualificação funcional para outra atividade lucrativa.
Os governantes precisam olhar, também, para as pessoas que não estão representadas por lobbys e associações junto ao governo. São milhões de brasileiros que sequer sabem como se dirigir aos ocupantes do poder. São pessoas que precisam de ajuda dos mais esclarecidos.
Criar um programa de renda mínima, ou expandir o programa existente, o bolsa família, é uma necessidade imperiosa do país. Mas quais as fontes de financiamento?
Fontes de financiamento são determinadas por escolhas políticas, mas partindo dos pressupostos básicos que estão no debate atual, cabe ressaltar alguns aspectos relevantes.
Comenta-se que a escolha pode recair em retirar um pouco dos trabalhadores que ganham mais para dar aos que ganham menos. Apontam a elite do funcionalismo como os privilegiados que deveriam arcar com a redistribuição de renda. O problema é que os números não fecham. Fala-se de uma economia de um bilhão de reais para uma necessidade de trinta bilhões anuais. Portanto, essa fonte de financiamento seria muito pequena para o tamanho do aumento desejado para o programa social. Cabe aqui registrar, também, que a perda de renda pela classe mais alta dos trabalhadores, invariavelmente, acaba redundando em prejuízo dos mais pobres. Os empregados domésticos são os primeiros a perderem o emprego toda vez que uma crise econômica atinge seus empregadores.
Todavia, a questão mais importante a ressaltar é que a grande concentração de riqueza que o país experimenta não está nas mãos das classes trabalhadoras, sejam no setor público ou privado. A elite financeira não depende de ganhos de seu próprio trabalho, vive da renda do capital. A grande maioria dos trabalhadores, ainda, sequer sabem o que é isso.
Uma das formas de ganho de capital são os dividendos distribuídos pelas empresas. Embora haja um certo consenso de que não há espaço para aumento da carga tributária sobre as empresas, há possibilidade para discutir eventual redistribuição dos encargos. Há setores beneficiados e outros prejudicados. A taxa de impostos do país não difere muito da média internacional, e não é baixa. Taxar empresa pode reduzir a competitividade do país.
Agora, taxar o lucro distribuído aos acionistas é taxar o ganho de capital. É tirar um pouco da parte mais rica da população para distribuir para a parte mais pobre. Seria um mecanismo de Justiça Social evidente. Ato de solidariedade humana tão em voga nesse momento de pandemia.
Segundo estudo publicado pela imprensa, as grandes empresas pagaram para os acionistas entre juros e dividendos, em 2019, cerca de 119,2 bilhões de reais (fonte Economática). Os juros sobre capital são tributados em 15% de imposto de renda, mas os dividendos são isentos. Se os dividendos forem tributados com a mesma alíquota de 15%, teríamos algo próximo a R$ 18 bilhões. Isto é, teríamos uma fonte relevante de financiamento para o programa social e isso em caráter permanente. Há inúmeras outras isenções em ganhos de capital.
Há outro aspecto a considerar, a tributação de dividendos não afasta o investidor nacional ou estrangeiro das ações por vários motivos: primeiro, porque no exterior os dividendos são tributados (nos Estados Unidos em 30%); e no Brasil, as outras opções de investimentos, também, são tributadas: os títulos públicos pagam de 15 a 22%; os juros sobre capital pagam 15%; portanto, uma tributação nessa faixa não seria maior que a dos demais investimentos disponíveis no mercado.
Outra fonte importante, na área de redução de gastos públicos, poderia vir do corte de funções de confiança. O país possui um dos maiores índices nesse tipo de emprego público. São funções transitórias. Não possuem vínculo permanente com o estado, nem estabilidade. Portanto, a extinção de muitos desses cargos não enfrentaria problema de direito adquirido, óbice legal que bloqueia as propostas de mudança no funcionalismo público de carreira.
Ou seja, o governo já obteria um ganho significativo, fazendo uma minirreforma administrativa se pura e simplesmente cortasse pela metade os cargos de confiança. A redução de despesas seria enorme; e, ainda, ajudaria a diminuir o problema de funcionários fantasmas na administração pública.
Em suma, é possível criar um programa de renda mínima, com fontes de financiamento consistentes e que importem em redução da desigualdade social, se o governo focar em eficiência administrativa e, principalmente, se buscar rendas geradas pelo ganho de capital, pela maior produtividade das máquinas e das novas tecnologias, em lugar de penalizar os parcos recursos advindos do trabalho próprio. Os grandes lucros e as grandes fortunas estão nas mãos daqueles que se beneficiam do trabalho alheio, das máquinas, do ganho de capital e das novas tecnologias.
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