José Celso Cardoso Jr.* e Jackson De Toni **
No livro organizado por José Celso Cardoso Jr. e Leandro Couto – Ousadia e Transformação (São Paulo: FPA e Contracorrente, 2023) – os autores apontam para a necessidade, cada vez mais imperiosa, de se conferir centralidade política e capacidade institucional à função planejamento estratégico governamental, caso contrário, o próprio processo de governar estará em risco no governo Lula (2023-2026) e além.
Desta maneira, a retomada de uma coalizão política progressista no governo federal reabriu o debate sobre a necessidade de reconstruir um projeto de desenvolvimento nacional para o país, debate bloqueado entre 2016 e 2022. Esse cenário é facilmente identificado pela multiplicação de amplos processos participativos para o redesenho de políticas públicas como o novo Plano Decenal de Educação, a Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação ou a Nova Indústria Brasil, a nova política industrial.
Nesse movimento se destaca o novo planejamento plurianual federal – o PPA 2024/2027. O plano prevê investimentos da ordem de R$ 13,3 trilhões focado em três eixos: desenvolvimento econômico, desenvolvimento social e democracia. Conhecido como “PPA participativo”, esta edição inovou positivamente ao contar com audiências presenciais em todas as unidades da federação e um processo de participação em plenárias e plataformas digitais, mobilizando 4,5 milhões de pessoas em todas as regiões do país.
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Após mais de trinta anos da Constituição Federal de 1988 já podemos saber o que deu certo e o que deu errado no nosso sistema de planejamento federal. A experiência de oito Planos Plurianuais permite dizer com segurança que o modo de planejar precisa ser sempre reinventado e reconfigurado à luz dos grandes problemas sociais que assolam o país. Precisamos alongar o horizonte de planejamento, incluir cenários de longo prazo e estudos prospectivos sérios e sistemáticos que possam alimentar os insights sobre metas, objetivos e visões de futuro. Esse aspecto se vê reforçado quando se constata que o planejamento de médio prazo, a cada quatro anos, sofre de uma terrível inércia institucional e cognitiva, apenas repetindo velhas fórmulas e mantendo uma grande desconexão com o mundo real de um país-continente.
Por essa razão, apesar de a função planejamento constar dos arranjos institucionais do que passou a ser chamado de Centro de Governo (CdG), os autores do livro destacam que a centralidade política e a capacidade estatal de planejamento superam o conceito de centro ou núcleo de governo, basicamente, por duas razões.
A primeira delas é que, ao contrário da ideia de ativismo presente na tradição e em teorias de planejamento governamental, a ideia de centro de governo possui implicitamente uma visão estática ou acomodatícia do processo de governar. Isso porque, tendo se desenvolvido, conceitualmente, ao longo das últimas duas décadas, a partir de estudos realizados pela Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), a ideia de centro de governo remete não tanto às transformações necessárias no arranjo central do Poder Executivo, responsáveis pela coordenação e execução das políticas públicas, mas sobretudo a um conjunto de procedimentos de gestão que, aplicados de forma racional (eficiente e eficaz) na interação entre determinados órgãos considerados essenciais ao centro de governo, fariam aumentar a capacidade e a qualidade do processo de governar, tanto do ponto de vista da interlocução política como da coordenação das políticas públicas. Daí o caráter estático ou acomodatício que a ideia de centro de governo traz consigo.
Em vez de concebido como um arranjo institucional dinâmico ou maleável às necessidades do momento situacional do país e do tamanho da ambição transformadora do projeto político vencedor das eleições, o centro de governo, tal qual vem sendo defendido pelos governos brasileiros recentes e por organismos autointeressados – como o Tribunal de Contas da União (TCU), a Controladoria-Geral da União (CGU), a Secretaria do Tesouro Nacional (STN), a Secretaria de Orçamento Federal (SOF), a própria OCDE etc. –, representa mais um modismo gerencialista e um arranjo formal de empoderamento adicional dessas organizações, com baixa possibilidade, de fato, de incrementar a capacidade de governo diante do mundo de problemas complexos da atualidade.
A segunda das razões pelas quais o planejamento supera a noção de centro de governo é que, historicamente, foi a função planejamento estratégico público que, dotada de centralidade política e capacidade institucional, no Brasil e alhures, conseguiu de fato promover transformações na estrutura de Estado, no arco de políticas públicas, nos métodos e técnicas de governo, na capacidade de imprimir coerência, sinergia e, principalmente, direcionalidade ao conjunto das ações estratégicas, rumo aos objetivos delineados. Além de ampliar a governabilidade, com competente análise de situações, ousadia política e visão de futuro (aliás, três atributos ausentes na ideia de centro de governo), também foi possível promover mudanças estruturais (quantitativas e qualitativas) no processo de governar em si e, mais importante, nas dimensões econômica, territorial e social associadas às políticas públicas.
Em outras palavras, enquanto a visão de centro de governo está dotada de natureza estática, presa no curto/médio prazo e dominada quase que exclusivamente pela noção de eficiência econômica dos atos de governo, a visão de planejamento estratégico público está associada a uma função intrínseca e indelegável do processo de governar, que é teórica e historicamente dinâmica, voltada ao processo de construção de capacidades estatais A necessidade de remontar e empoderar o sistema nacional de planejamento para a transformação econômica, territorial e social do país, confundindo-se ela própria com partes relevantes do processo decisório de governo.
Assim, ainda que o planejamento possa estar inscrito no centro de governo, esse conceito pode implicar a sua limitação funcional a atividades relacionadas ao equilíbrio fiscal e à eficiência do gasto público, descartando elementos ligados à efetividade da ação pública e à construção de condições situacionais favoráveis a mudanças na sociedade e no corpo institucional do Estado.
Conferir centralidade política ao planejamento supera, portanto, sua localização no centro de governo, enquanto origina uma ênfase profundamente diversa – e mais proativa – no que diz respeito às possibilidades concretas da ação pública. Em suma, entendemos o planejamento como um processo cotidiano e dinâmico de condução do governo; não se confunde com documentos, livros e planos, ainda que estes, se bem elaborados, ajudem como parte necessária ao registro documental, bem como na comunicação interna e externa ao governo. Antes de tudo, planejamento é a arte da política e de sua prática coerente ao longo do tempo.
Logo, planejamento é o processo tecnopolítico – sistêmico, contínuo e cumulativo – por meio do qual se dá concretude tanto ao programa de governo quanto às demandas, propostas e projetos oriundos da sociedade, canalizados por grupos que disputam, de forma legítima e democrática, a incorporação de programas ou ações ao plano de governo. Por isso, tanto melhor quanto mais republicanos e democráticos forem os critérios de organização institucional do Estado e os valores e normas de funcionamento das instituições e das próprias políticas públicas, sendo o planejamento governamental o centro irradiador desse processo.
Dito isso, o planejamento governamental, que deve ser participativo, coordenador, sistêmico e ousado, se vincula, evidentemente, ao debate de como e por que construir um projeto nacional. Pode-se ver, como os estudiosos do tema já apontam, que o tema e mesmo a possibilidade de um “projeto nacional” é uma não-questão para boa parte das elites econômicas e culturais. Boa parte das elites parece ter abandonado perspectivas de desenvolvimento autônomo e independente do país, o que pode ser fatal para o futuro da nação.
Dessa maneira, uma política nacional de desenvolvimento é a única saída para que o país tenha algum protagonismo nos novos ciclos mundiais de avanço tecnológico e novos modelos produtivos, em especial os intensivos em investimentos públicos em inovação, pesquisa e desenvolvimento. O Estado Nacional deve induzir setores estratégicos, por exemplo, em energias renováveis, segurança sanitária, transformação digital para empresas, inovação para os grandes gaps sociais e assim por diante.
O desenvolvimento social, econômico, político não é obra solitária de um salvador da pátria, seja onde estiver no campo ideológico, mas de um esforço coletivo, institucional e até geracional, na melhoria dos instrumentos e da gestão estratégica, entre eles a capacidade estatal matriz, aquela que suporta todas as demais: a capacidade de planejamento estratégico governamental. O Brasil, como dizia Celso Furtado, é uma nação cuja construção foi interrompida. Nosso modelo econômico disfuncional baseado na extração de commodities agrícolas e minerais, tomou o lugar da industrialização e consolidação do mercado interno. Na sequência, a hipertrofia do sistema financeiro, que absorve boa parte da renda nacional, registra os maiores lucros do planeta.
Mesmo a industrialização do pós-guerra, suportada por crédito público diferenciado e infraestruturas físicas instaladas, se concentrou em quatro estados (SP, MG, RJ e RS), gerando uma estrutura que acentuou as desigualdades regionais de renda. O Estado nacional, por sua vez, teve sua capacidade de investimento colapsada pela combinação entre o peso da dívida pública, da má gestão e da perda de arrecadação potencial pela sonegação endêmica. Esse modelo é incapaz de gerar empregos na quantidade e qualidade necessárias para uma nação que já superou a marca de duzentos milhões de habitantes. Pergunta-se, então, o mercado – deixado à sua própria sorte – terá condições de criar estratégias para solucionar tal estado de coisas? Não!
Só o Estado pode coordenar um novo projeto nacional hegemônico, tecnicamente viável e politicamente sustentável. Nenhum governo pode ser melhor que a importância dos problemas que seleciona para enfrentar e sua capacidade de processá-los e resolvê-los, algo determinado pela qualidade do sistema de planejamento. A capacidade técnica só existe mediada pela política, já que o plano não é uma lista amorfa de prioridades, nem mesmo um texto cheio de objetivos, metas e dotações orçamentárias. Um plano que seja instrumento de um projeto nacional é, no fundo, um grande pacto nacional que estabelece a hegemonia duradoura de uma visão de futuro. Uma visão mobilizadora da sociedade, capaz de engajar diferentes, heterogêneos e conflitantes setores e grupos sociais.
É por isso que esse planejamento, pensado como capacidade estatal, requer uma nova burocracia púbica, qualificada, comprometida e engajada com o processo de transformação das instituições, dos processos de gestão e do modo como a máquina pública funciona. A necessária qualificação e universalização de serviços públicos, entre outros desafios, também depende de um eficiente sistema de planejamento, entendendo que os sistemas de gestão, monitoramento, avaliação e coordenação são subsistemas conectados e interdependentes.
O Brasil tem oportunidades únicas no cenário internacional. O centro hegemônico mundial está se deslocando para uma configuração multipolar, centrada em experiências notáveis de crescimento acelerado. Novos blocos econômicos, alianças e parcerias comerciais e de investimento reforçam a necessidade de reconstrução do sistema de planejamento nacional. As crises de 2008, a recente pandemia, o quadro de incerteza crescente no xadrez geopolítico mundial justifica – agora no cenário externo – um esforço deliberado, persistente e substantivo na direção do planejamento governamental, democrático, participativo, integrador.
Esta é, então, a aposta dos autores e do livro que os leitores têm agora à disposição.
* Economista pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP), com mestrado em Teoria Econômica e doutorado em Desenvolvimento (com especialização em economia social e do trabalho), ambos pelo Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (IE/UNICAMP). Desde 1996 é técnico de Planejamento e Pesquisa do Ipea.
** Professor de Planejamento e P. Públicas, PhD em Ciência Política, consultor em avaliação executiva e analista de produtividade e inovação na Associação Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI).
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