No curso de mestrado em Políticas Públicas e Governo tenho me deparado com textos clássicos de escritores estrangeiros e nacionais tão importantes e significativos para compreender a vida política, que seria egoísmo de minha parte não compartilhar essas leituras com todos aqueles que se interessam por política. Ao resenhar esses textos, meu objetivo é democratizar o acesso a visões teóricas que possibilitem novas formas de ver e interpretar os fenômenos políticos, econômicos e sociais. Iniciamos pelo artigo “O Mercado como Prisão”, publicado em 1982.
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O texto, de autoria do professor e acadêmico americano Charles Edward Lindblon,, um dos grandes nomes da ciência política estadunidense, e autor, entre outras obras, de clássicos como “Politics and markets – The World’s Political-Economic Systems”, e “The policy-making process”, e primeiro a desenvolver o conceito de incrementalismo no processo de políticas públicas, aborda o poder do mercado sobre o sistema político buscando demonstrar que nas sociedades liberais existe uma posição privilegiada dos negócios sobre o sistema político.
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Para o autor, o mercado é a única instituição na qual qualquer tentativa governamental de alterar políticas públicas que contrariem suas expectativas desencadeia punição automática à sociedade, sob a forma de desemprego ou queda no desempenho da economia. Em nenhum outro lugar – escola, família, igreja, sindicato, etc – existe um conjunto tão eficaz de punições automáticas estabelecidas como barreira à mudança social, como na economia de mercado.
Nas sociedades voltadas para o mercado, a instituições e políticas do Estado protegem a autoridade de tomada de decisão dos empresários em seus próprios negócios, garantindo prerrogativas de gestão, inclusive o direito de auto-recrutamento nas elites corporativas, mantendo políticas que consolidam a distribuição existente da renda e da riqueza, assim como mantendo o movimento trabalhista sob controle. Com tamanho poder e proteção, os empresários não precisam debater se devem ou não impor pena, bastando reduzir ou suspender seus investimentos. A verdade é que o mercado, que vive de expectativa, parece absoluto. Ele não é visto como variável, mas como elemento fixo, em torno do qual a política deve ser formulada.
A explicação para tanto é que nos sistemas políticos das sociedade liberais as grandes tarefas de organização e coordenação são divididas entre os altos funcionários do governo e os líderes empresariais, que se movem por lógicas distintas: os primeiros são dirigidos e controlados por sistemas de comando, e os segundos são dirigidos e controlados por sistemas de incentivos. Assim, os altos funcionários podem ser comandados para o desempenho de suas funções, enquanto os empresário não podem ser comandados, mas devem ser induzidos, e reagem a qualquer mudança governamental que enxerguem como desincentivo ou como antiindução, podendo levá-los a não cumprirem suas funções ou cumpri-las com menos vigor.
Assim, quando há qualquer mudança ou reforma de que não goste ou que seja percebida como risco ou ameaça de redução de seus incentivos, o mercado dispara uma punição automática para reprimir a mudança. A lógica é de que a punição seria uma decorrência natural da administração prudente de seus empreendimentos, e não de conspiração ou intenção de punir, mas simplesmente porque muitas mudanças institucionais reduzem os incentivos com os quais contam para motivá-los a fornecer emprego e executar suas outras funções. Deste modo, para uma ampla categoria de assuntos políticos/econômicos, o mercado reprime a formulação de políticas públicas e aprisiona as tentativas de melhorar as instituições.
Para o autor, o verdadeiro obstáculo à mudança social não seria uma espécie de inércia social ou uma tendência das sociedades de permanecer como estão, como muitos imaginam, mas a prevalência da força do mercado na disputa com outros setores que reclamam mudança social. Trata-se de um mecanismo social altamente seletivo que admite determinados tipos de mudanças e impõe obstáculos poderosos a outros tipos.
As revoluções sociais do mundo, a partir da cooperação social por meio de organizações formais, especialmente a organização burocrática, promoveram muitas mudanças na vida social, como os costumes sexuais, mas quando essas mudanças contrariam expectativas de mercado, é acionado mecanismo automático que retarda ou reprime com sucesso parte da mudança. E quando alguma mudança avança sobre áreas em que os empresários desaprovam geralmente há algum tipo de compensação, benefício ou apoio aos negócios, numa espécie de pagamento de resgate.
Apesar do aprisionamento das instituições na formulação de políticas públicas nas sociedades orientadas para o mercado, as pessoas e até os profissionais não enxergam no mercado essa característica embaraçosa do sistema democrático. Nos Estados Unidos, durante a gestão Reagan, o governo argumentava que não podia haver crescimento, estabilidade de preços e pleno emprego, a menos que se deixasse de minar os incentivos às empresas, com regulação ou restrições à livre iniciativa. O autor sugere que os soviéticos, na década de 1960, ao perceberam que o crescimento do mercado implicava restrições em sua própria capacidade de fazer políticas e isto faria com que as autoridades fossem aprisionadas por seu compromisso com o mercado, desistiram de introduzir mais elementos da economia de mercado naquele momento.
O diagnóstico do autor é de que existe certa incompatibilidade entre duas grandes instituições da sociedade – a negociação coletiva, de um lado, e o sistema de mercado, de outro, e que uma delas terá que ceder. Em sua visão, nenhuma sociedade de mercado pode alcançar uma democracia totalmente desenvolvida porque o mercado aprisiona o processo de formulação de políticas. Esse diagnóstico, entretanto, leva a um dilema insolúvel: para uma democracia mínima é necessário um sistema de mercado e para uma democracia mais plena, exige-se a eliminação do mercado; porém a eliminação do mercado pode representar mais obstáculo para uma democracia mais plena do que a prisão contínua da formulação de políticas.
Numa crítica à academia, o autor reconhece que o pensamento está aprisionado e que isto é tão forte que afeta não apenas o pensamento popular, como também o pensamento profissional nas ciências sociais. Afirma que o pensamento pluralista dominante na ciência política americana descreve toda a formulação de políticas como resultado de vetores e que cada vetor geralmente resulta da influência de algum grupo, porém não reconhece que para determinados tipos de questões políticas a competição pluralista não funciona. Para ele, o pluralismo, no máximo, opera apenas em uma zona não presa de formulação de políticas públicas.
Sugere ainda que a teoria dos grupos de interesse, em sua maior parte, trata os interesses comerciais como simétricos com o trabalho e outros interesses relacionados à formulação de políticas, sem reconhecer que os interesses de mercado ocupam um lugar especial e privilegiado na formulação de políticas públicas. Por fim, questiona a visão segundo a qual a democracia liberal é um sistema semelhante ao de mercado, que permite que as preferências individuais, quaisquer que sejam, possam governar a política pública, sem considerar a influência do mercado na formação das preferências. Na opinião dele, a lógica de que a democracia é um mercado político está equivocada, porque os sistemas orientados para o mercado, chamados de democráticos liberais, exercem menos controle sobre a política do que imaginamos. Somos menos livres do que pensamos.
A reflexão que resenhamos neste texto – a partir do que é uma síntese feita por Lindblom de ideias já lançadas em “Politics and Markets”, de 1977 – continua atual e explica muito do que acontece no Brasil e no mundo hoje. No próximo texto, com base em outro clássico, vou tratar da crítica a duas correntes de pensamento muito influentes na ciência política: o pluralismo e o elitismo. Até lá e boa leitura.
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