por Toni Reis*
Enterrou-se a falácia da “ideologia de gênero” no Brasil, Escola Sem Partido está respirando por aparelho.
Em decisão unânime os onze ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal (STF) julgaram inconstitucional a Lei 1.516/2015 do município de Novo Gama-GO, que impunha proibição de veiculação de materiais e informações nas escolas municipais que contenham aquilo que se convencionou falaciosamente chamar de “ideologia de gênero”. O julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 457-GO, provocado por nós, se deu em sessões virtuais que terminaram em 24/04/2020.
A noção de “ideologia de gênero” parece ter suas origens no Vaticano da época de Ratzinger (Papa Bento XVI), sendo basicamente uma tentativa de frear o movimento pela igualdade entre os gêneros, a partir de uma ótica bíblica de que a mulher deve ser submissa, bem como conter o avanço no reconhecimento da igualdade de direitos das pessoas LGBTI+**, com base em outra interpretação da Bíblia que vê os homossexuais praticantes como pecadores. São esses dois grupos o principal alvo da falácia da “ideologia de gênero”.
Digo falácia porque esta ideologia não existe entre os grupos aos quais ela foi atribuída. Existem sim movimentos pela igualdade de direitos para todos, conforme preconizada na Declaração Universal dos Direitos Humanos: “todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”. “Ideologia de gênero” foi cunhada como uma estratégia para manipular a opinião daqueles que queriam acreditar cegamente e daqueles sem senso crítico para perceber o objetivo da manobra. Assim, a falácia se espalhou mundialmente como uma espécie de coronavírus, contaminando e ganhando força principalmente entre pessoas com convicções cristãs mais tradicionais/fundamentalistas.
No Brasil a falácia foi reforçada com a chegada do livro “Ideologia de Gênero: o neototalitarismo e a morte da família”, da autoria de Jorge Scala, advogado argentino e católico convicto, semeando sua “boa nova” mundo afora.
PublicidadeA moléstia da “ideologia de gênero” chegou ao pico da curva epidemiológica no Brasil concomitantemente com a tramitação do Plano Nacional de Educação no Congresso Nacional por volta de 2013/2014, do qual a palavra gênero foi extirpada, e o efeito tsunami se fez sentir subsequentemente em diversos Planos de Educação ou em leis versando sobre a educação no âmbito local em diversos lugares no país, como foi o caso da Lei 1.516/2015 de Novo Gama-GO.
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São dispositivos legais que seguem em essência a mesma linha: “fica vedada a adoção e/ou divulgação de políticas de ensino que tendam a aplicar a ideologia de gênero”. Alguns vão mais longe e preveem a aplicação de penas para professores/as que abordam esta temática e assuntos como diversidade sexual e gênero no ambiente educacional.
Tem-se aqui uma afronta à Constituição Federal em censurar e em não tratar com igualdade todos/as os/as estudantes no sistema educacional, marginalizando aqueles/as que não seguem a heteronorma, além de ferir a liberdade de cátedra dos/das profissionais de educação: (Art. 206) “… igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas…”,
Por isso foram movidas no STF arguições de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) contra estas leis, alegando sua inconstitucionalidade. A primeira delas a ser julgada foi derrubada. Há mais 14 ações da mesma natureza aguardando julgamento o STF.
É só olhar para dados oficiais e científicos para poder perceber que há um problema de proporções gigantescas na sociedade brasileira no que tange a desigualdades entre os gêneros e atitudes hostis e violentas contra pessoas LGBTI+.
Houve 3.739 homicídios dolosos de mulheres no Brasil só no ano de 2019, sendo que 1.314 delas tiveram sua morte classificada como femicídio, isto é, crimes de ódio motivados pela condição de gênero, de ser mulher. Este número representa um femicídio a cada 7 horas, em média. O mesmo padrão se repete todos os anos. Somente em 2017, foram registrados 26.835 estupros em todo o país, o que equivale a 73 estupros registrados a cada dia naquele ano. Destes, 89% tiveram mulheres como vítimas.
Pesquisa nacional realizada referente ao ano letivo de 2015 sobre as experiências de estudantes LGBTI+ na faixa dos 13 aos 21 anos no ambiente escolar retratou um cenário nada alentador. É um cenário caracterizado pela insegurança dos/das estudantes LGBTI+ nas instituições educacionais, com alta incidência de agressão verbal, física e violência: 60% se sentiam inseguros/as, 73% foram agredidos/as verbalmente e 36% foram agredidos/as fisicamente na escola no último ano por serem LGBTI+. Também não contaram com o devido apoio ou medidas para contornar essas situações, ou com um número adequado de profissionais de educação capacitados/as para dar conta dessas situações e revertê-las por meio de ações educativas.
Dados do Grupo Gay da Bahia, publicados concomitante com o julgamento da ADPF 457-GO, sobre mortes violentas de pessoas LBTI+ no Brasil em 2019 revelam que naquele ano 329 LGBTI+ tiveram morte violenta no Brasil, vítimas da homotransfobia: 297 homicídios (90,3%) e 32 suicídios (9,7%). Assim como no caso das mulheres, os dados se repetem todos os anos. Há décadas mais de 300 pessoas LGBTI+ são assassinadas anualmente no país por serem LGBTI+.
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Diante destes fatos, fica evidente que é preciso educar formalmente também para o respeito entre os gêneros e para com as pessoas LGBTI+. Além disso, a igualdade de gênero é um dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas. Profissionais da educação podem e devem ensinar no ambiente educacional que mulheres e homens são iguais perante a lei, podemos e devemos discutir a palavra “gênero” no Brasil, que pessoas LGBTI+ e heterossexuais são iguais e que não pode haver preconceito, discriminação, estigma ou violência em função da orientação sexual e/ou identidade/expressão de gênero das pessoas. Deve ser matéria obrigatória, desde o ensino infantil até a pós-graduação, com dosagem apropriada para cada faixa etária.
Não queremos transformar ninguém em LGBTI+. Não queremos destruir a família de ninguém, queremos construir a nossa, do nosso jeito. Queremos simplesmente o respeito para todas as pessoas. E o respeito se aprende também no ambiente educacional.
O ovo da serpente foi quebrado. A falácia da “ideologia de gênero” está com os dias contados. A racionalidade e o bom senso prevalecerão sobre a ignorância e a inverdade. O obscurantismo e o fundamentalismo devem voltar para a Idade Média, de onde nunca deveriam ter saído.
*Toni Reis é professor, pedagogo, especialista em sexualidade humana, mestre em filosofia, doutor e pós-doutor em educação. É diretor presidente da Aliança Nacional LGBTI+
** LGBTI+ – lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, pessoas intersexo e com outras expressões de gênero e orientação sexual.