Há menos de duas semanas o governo interino designou a nova titular da Secretaria dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça, a professora e procuradora Flávia Piovesan. Ela é autora de vários livros nos que se revela como defensora do direito ao aborto, da igualdade de gênero e dos direitos das minorias, e também como crítica da homofobia e ampla conhecedora da legislação internacional.
Em várias das entrevistas que concedeu à mídia por causa de sua nomeação, foi perguntada sobre o motivo de aceitar o convite. A pergunta é natural: o presidente, seus ministros, e sua base parlamentar (mais de 360 deputados e de 50 senadores) possuem um perfil absolutamente incompatível com um projeto de direitos humanos.
Das entrevistas que li ou assisti, a mais interessante é a concedida a Mário Sérgio Conti, no programa Diálogos, transmitido pela Globonews no último dia 19. Esta é a versão completa encontrada no YouTube:
Diante da sensibilidade dos problemas de direitos humanos, o mais importante não é a reflexão sobre se o governo é ou não é golpista. Qualquer que seja o caminho pelo qual chegou ao poder, o relevante é qual é a agenda que lhe permitiu atingir esse poder.
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Flávia terá como companhia de trabalho uma equipe de “homens públicos”, dos quais dois terços são investigados, indiciados ou denunciados por diversos crimes. Salvo algum caso isolado, cada ministro representa, em sua área (saúde, economia, “educação”, até relações internacionais), uma forma extrema de faxina social e ideológica. O curriculum de seu chefe imediato inclui um amplo leque de violações dos direitos humanos, falsificação de estatísticas sobre criminalidade, representação na defesa de gangues poderosas e estreita colaboração com o governo de São Paulo.
Indagada por Conti sobre suas expectativas sobre a base parlamentar que ele chama prudentemente de “conservadora”, a jurista proclamou sua vocação pelos direitos humanos acima de qualquer posição política, e sua decisão de “evitar o recuo e o retrocesso” e ajudar no avanço. É louvável uma visão tão otimista de uma tarefa que amedrontaria à Liga dos Super-Heróis.
Flávia Piovesan focou nos aspectos formais, enfatizando as leis de defesa dos direitos humanos desde os anos 80, e as virtudes de todos seus antecessores. Contudo, falou muito pouco sobre a forma em que essas leis devem ser aplicadas. Sem dúvida, a legislação é indispensável, mas, se o objetivo éa proteção das pessoas e não apenas a erudição, seria bom pensar um pouco em sua execução. Afinal, a Secretaria dos Direitos Humanos é um organismo executivo e não legislativo.
Vejamos um exemplo da discrepância crônica entre teoria e prática. A Lei 7.716/89 contra o racismo foi produzida em 1989, promovendo grande quantidade de denúncias da população negra. Apesar disso, em 2006 (após 17 anos), o sociólogo Ronaldo Laurentino de Sales Júnior revelava, em sua excelente tese de doutorado, que nesse período só houve um caso de condenação por racismo.
Vale lembrar o que todos sabem: mais de70% do Judiciário e do Parlamento, e cerca de 95% do governo têm um perfil nítido. Eles consideram os ativistas de direitos humanos um bando de abelhudos e baderneiros que interferem nas relações de poder, ajudam nos protestos dos miseráveis, criticam a tortura e os assassinatos policiais, desprezam o belicismo, defendem a liberdade religiosa e sexual, promovem a publicidade internacional dos crimes de Estado, gostam de cultura e educação; e, pior ainda, não têm medo dos algozes. Os “deputados jagunços” são o exemplo mais grotesco da categoria, mas não o único.
Nos escritos de Flávia Piovesan se percebe um bom grau de informação e esforço, como transparece na coordenação de 31 autores que compilaram e anotaram o vasto Código de Direito Internacional dos Direitos Humanos, que compreende 47 documentos originais da legislação planetária dos direitos humanos.
Justamente por isso é difícil imaginar um plano de trabalho compatível com a parte substantiva (não burocrática) desse livro num meio em que a violação desses direitos é uma questão de honra. Entre os vários exemplos, na página 1188 fala-se da obrigação dos Estados de punir a tortura. Como se faz para inibir desde “dentro” do sistema as centenas de pessoas públicas que glorificam a tortura, o trabalho escravo e o estupro de colegas?
É verdade que os órgãos oficiais dos direitos humanos dos países “emergentes” são semelhantes. No entanto, a exacerbação da barbárie nas últimas legislaturas torna o Brasil um caso especial. Há algum tempo, iniciou-se um pesadelo quando, devido à omissão do PT, a Comissão de Direitos Humanos da Câmara foi ocupada por figuras cuja sobrevivência após o século 16 muitos de nós sequer suspeitávamos. Apesar de o PT ter retomado a comissão no período seguinte, o poder de aquela horda não deixou de crescer.
Na última década foi aberta a Caixa de Pandora: racismo, cárcere para crianças, cura gay, terceirização do emprego, armas para todos, feminicídio, trabalho escravo, antiaborto, “bolsa estuprador”, equiparação de dissenso com terrorismo, estatuto da família e do nascituro, usurpação de terras indígenas, código de mineração, e outras coisas.
Os “iluminados” deitaram e rolaram: aumentaram os linchamentos (como no caso de Guarujá em 03/05/2014), surgiram os jovens gladiadores uniformados, houve ataques contra comunidades afro-brasileiras e juízes deliberaram contra queixas-crimes sobre mensagens de ódio, etc. Até uma pessoa que se candidatava à presidência do Brasil acusou os críticos de um pastor racista de “preconceito contra evangélicos”.
É verdade que, já antes de 2010, vários secretários de direitos humanos já deveriam ter arquivado suas ideias, quando entravam em conflito com as “alianças” do governo, como aconteceu com o excelente projeto de Paulo Vannuchi. Todavia, as condições de trabalho da comunidade de direitos humanos desde 1985 tiveram uma razoável normalidade democrática até tempos recentes. A exceção a isso foi o Estado de São Paulo, cujos numerosos massacres são comparáveis com os das sociedades mais sangrentas do Oriente. O modelo paulista, com os pentecostais substituindo parcialmente o Opus Dei, estende-se agora a todo o âmbito nacional. Os vírus liberados podem cobrir o mapa todo.
Os governos mais iníquos da história sempre recrutaram pessoas prestigiosas que diziam “lutar desde adentro”. Elas argumentavam que sua presença num alto cargo impedia que fosse ocupado por pessoas “sem ética”. O resultado é bem conhecido e até foi motivo de centenas de romances e filmes. Os “salvadores” se adaptaram rapidamente ao novo sistema (como fez o general Pétain na França ocupada, ou Quisling na Noruega), salvo uma ínfima proporção de “ingênuos” que deveram se demitir logo em seguida.
Durante a Segunda Guerra, diversas pessoas não nazistas, incluindo alguns judeus, ajudaram o nazismo afirmando que assim diminuiriam a brutalidade da perseguição. Em 1963, o Estado de Israel deu um prêmio ao empresário nazista Oskar Schindler, por ter salvado 1200 judeus que trabalhavam como escravos em suas fábricas. Cabe perguntar-se: quantos milhares teriam salvado suas vidas se Schindler não fosse fabricante de munição para o Reich e tivesse virado opositor ativo?
Até as causas mais nobres em sua origem podem ser manipuladas, como acontece não apenas com os direitos humanos, mas também com a ecologia, a ciência e a arte. Um caso típico é o dos EUA, que fazem listas dos países violadores dos direitos humanos, nas quais eles não se incluem. Outro caso famoso é o lema de um campo de concentração alemão: O trabalho vos fará livres.
Em um órgão de direitos humanos, especialistas competentes são os que melhor podem ajudar aos governos a manter as violações desses direitos no “baixo perfil”. Também há exemplos próximos de que esses especialistas podem contribuir a justificar as violações e obstruir os defensores. Há centenas de casos, mas estou pensando na vizinha Argentina. Em 1985-87, o governo democrático favoreceu uma infame anistia contra os militares assassinos, que só foi anulada em 2005. O então secretário de diritos humanos esnobou as forças humanistas que se organizaram contra essa canalhice e lutaram durante duas décadas.
Reclamar sobre questões vitais em momentos de máxima urgência é algo que as ONGs de direitos humanos devem fazer para proteger vítimas. Isso não significa diálogo, mas denúncia. Por exemplo, em data recente, Anistia Internacional denunciou com energia a preocupação que causa a agenda legislativa do Parlamento brasileiro.
Pela própria definição, toda secretaria é um organismo político, a despeito da fingida neutralidade de seus chefes. Então, quando a situação é extrema como agora, devem ser evitadas quaisquer atitudes que possam ser entendidas como legitimação.
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