*Por Jeniffer Mendonça, João Frey e Paloma Vasconcelos
A proposta do Depen (Departamento Penitenciário Nacional) de manter presos suspeitos de coronavírus em contêineres está prestes a ser votada pelo CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária). A votação aconteceria na terça-feira da semana passada (28/4), mas, depois da pressão de entidades de direitos humanos e de organizações que lutam pelos direitos das pessoas em privação de liberdade, foi adiada. Ainda não há confirmação de uma nova data, mas a expectativa é de que não passe da semana que vem.
A reportagem teve acesso a documentos, produzidos entre os dias 19 e 24 de abril, que mostram detalhes do planejamento desses espaços. O arquivo mais recente é um relatório da Delegacia Regional de Polícia Federal em Foz do Iguaçu, no Paraná, relatando a experiência com os contêineres. O documento aponta que a unidade custou R$ 100.570,00 e “conta com 08 camas no estilo beliche de estrutura metálica, grades, vaso sanitário em inox, pia em inox, chuveiro com água aquecida, bebedouro, condicionador de ar, cobertura com toldo de lona e outras benfeitorias”.
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A reportagem também teve acesso a dois documentos do Depen, dos dias 23/4 e 24/4. Um deles, aponta que a estrutura pode ser aproveitada de maneira permanente depois a pandemia (leia íntegra aqui). O outro é uma apresentação que traz detalhes da proposta, como tamanho das celas (leia íntegra aqui). Uma cela para 10 presos terá 12 metros de comprimento; uma para 4 pessoas terá 6 metros. O documento também aponta que os contêineres devem considerar “critérios de custos, velocidade e sustentabilidade”.
Outro documento obtido pela reportagem é um rascunho de uma portaria a ser assinada pelo presidente do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, Cesar Mecchi Morales.
Nesta portaria, que define a “arquitetura penal para o enfrentamento à disseminação do novo coronavírus”, um dos artigos rascunhados fala da autorização de “implementar soluções alternativas para as unidades, visando a instalação de novas vagas e estruturas extraordinárias e específicas para o enfrentamento do coronavírus”.
As estruturas, segundo esse documento, serão destinadas para presos com suspeita de covid-19 e para os que estão entrando no sistema prisional e precisam ficar em “quarentena preventiva” antes de serem inseridos em pavilhões com outros presos. Idosos e presos que testaram positivo para o coronavírus ficariam proibidos de serem mantidos nesses espaços
Na apresentação do Depen, há exemplos de outros países que adotaram contêineres, como a Nova Zelândia, que usou esses espaços para “ampliar as vagas” na prisão de Rimutaka, em 2010, e a Austrália, que usou celas feitas de contêineres em diversas unidades prisionais. O exemplo de Foz do Iguaçu, no Paraná, também aparece no documento como “experiência bem sucedida” de acomodação temporária de presos em função de “reforma da unidade”.
O modelo sugerido pelo Depen tem cobertura das celas com telhas termoacústicas para conforto térmico, instalação de circulação de ar forçada/aparelho de climatização, área interna livre para circulação com mesas e bancos para refeições, sistema de detecção automática de incêndio.
No relatório da Delegacia Regional de Polícia Federal de Foz do Iguaçu, usada por 42 presos no período de 27 de janeiro a 06 de março de 2020, há o valor de cada contêiner: mais de 100 mil reais. A estrutura, segundo o relatório, foi apresentada para representantes da Justiça Federal, Ministério Público Federal, Defensoria Pública da União e Ordem dos Advogados do Brasil.
“Não foi registrado qualquer tipo de incidente que evidenciasse a fragilidade ou inadequação do espaço para a finalidade proposta”, indica o relatório.
O que não consta nas documentações é a experiência ruim de manter presos em contêineres em Vila Velha, na grande Vitória, no Espírito Santo. Na ocasião, a cidade chegou a manter 580 presos em contêineres, entre os anos de 2006 a 2010, quando o estado foi denunciado na ONU (Organizações das Nações Unidas) e na OEA (Organização dos Estados Americanos) por violação de direitos humanos. Inspeções mostraram presos em contêineres de ferro a temperaturas que chegavam a 50ºC.
Em nota técnica divulgada em 28 de abril, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e o CNMP (Conselho Nacional do Ministério Público) consideram que o aprisionamento em contêineres “já foi expressamente rechaçado em outras oportunidades, por representar condição degradante e violadora de direitos humanos”.
O posicionamento dos conselhos também ressalta que “toda e qualquer solução deve ser implementada em consonância com parecer técnico atendendo às especificidades das Diretrizes Básicas para Arquitetura Penal, constantes da Resolução CNPCP no 9/2011, sob risco de o Estado brasileiro reiterar em medidas atentatórias à dignidade humana e aos tratados internacionais de direitos humanos dos quais o país é signatário”.
Saída de Moro desorganizou debate
Sob condição de anonimato, um conselheiro do CNPCP contou como a proposta do Depen foi recebida pelo colegiado. Inicialmente, segundo ele, o clima era favorável para a aprovação do projeto. Entretanto, a forte reação da sociedade civil afetou os conselheiros, que passaram a pensar em alternativas para serem apresentadas.
No meio desse processo, entretanto, Sergio Moro pediu demissão do Ministério da Justiça e Segurança Pública, o que levou alguns conselheiros a renunciarem a suas cadeiras. Um deles, Walter Nunes, era o relator da proposta do Depen de uso de contêineres.
Com a saída de Nunes, a relatoria da proposta ficou com Gilmar Bortolotto, procurador do Ministério Público do Rio Grande do Sul. Ele foi procurado pela reportagem, mas não quis dar entrevistas justamente por ser o relator da proposta e ainda não ter submetido seu relatório ao plenário.
Na ata da conturbada reunião do dia 24 de abril (leia aqui), quando conselheiros renunciaram, há um indicativo de outro caminho que pode ser adotado pelo CNPCP.
Após informar sua renúncia, o juiz Paulo Sorci “com vistas a contribuir com os trabalhos em andamento”, manifestou posição no sentido de que não seria necessária a edição de nova uma resolução para flexibilizar os parâmetros de arquitetura penal, já que as normas tratam de estruturas permanentes e a utilização de contêineres é uma solução provisória, portanto sua utilização fica a critério de cada estado, responsáveis pelo sistema prisional local.
A posição de Sorci confronta o documento do Depen que sinaliza uma possibilidade de que os contêineres sejam aproveitados mesmo após a pandemia.
Em uníssono, entidades dizem “não” aos contêineres
Raíssa Maia, pesquisadora do projeto Justiça Sem Muros do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), organização que assina a carta enviada à Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o apelo urgente enviado à ONU sobre o tema, lembra como o coronavírus se agrava no cárcere.
“O coronavírus possui um altíssimo contágio e significativa letalidade. Prisões são ambientes de superlotação, fechados e de insalubridade, com aglomerado de pessoas que não têm uma boa alimentação e que têm condições de saúde prejudicadas”, argumenta Maia.
As medidas de contenção do alastramento do vírus, que seria o distanciamento social e a higienização, com água e sabão ou álcool em gel, são incompatíveis com a realidade do cárcere brasileiro. “Estamos diante de um eminente colapso dentro de cárcere, que vai ser, sim, o palco de genocídio e de um epicentro da disseminação da doença na sociedade”, aponta a pesquisadora.
Essa também é a visão do advogado Damazio Gomes, membro da Rede de Proteção e Resistência Contra o Genocídio. “A instalação desses contêineres é um projeto maquiado. Quem olha e não tem um entendimento de como funciona o sistema prisional no Brasil, vai dizer que realmente é uma medida acertada, mas não é. O estudo se baseia por outros países que fizeram a implementação desse tipo de política e a gente precisa entender que aqui no nosso país, nos presídios comuns, existem grandes violações de direitos humanos, tratamentos cruéis, a tortura e a superlotação que não preciso nem falar”, aponta.
Damazio defende que o Ministério da Justiça e Segurança Pública deveria seguir a recomendação 62/2020 do CNJ, referendada pelo Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU, de colocar presos em risco de coronavírus e que tenham cometido crimes sem violência em prisão domiciliar.
“A gente precisa realmente ter muita cautela com esse tipo de política. Se isso for implementado, o risco de a gente ter um genocídio da população carcerária é muito grande. Isso é uma política desastrosa. As recomendações da OMS e do CNJ foram ignoradas pelo sistema de política criminal do nosso país”, conclui.
A Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial e a Agenda Nacional pelo Desencarceramento lançaram uma campanha nesta terça-feira (5/5) de mobilização nas redes sociais. A ideia é que pessoas contrárias ao projeto se fotografem segurando um escrito “Não aos contêineres” e divulguem usando a frase como hashtag.
Controle de corpos negros
A pesquisadora do ITTC Raíssa Maia aponta que as prisões no Brasil são uma forma de controle de pessoas negras e corpos que são considerados com menor valor, e chama a atenção para a simbologia impregnada no contêiner.
“Por causa da seletividade penal e do racismo, a população prisional possui 65% de pessoas negras. Assim, corpos que já foram mercadoria, vão ser colocados em contêineres, que servem para transportar carga”, critica Maia.
Para ela, o encarceramento precisa ser pensado urgentemente como medida para contenção da epidemia. E, infelizmente, o Estado tem feito justamente o contrário.
Desde que essa proposta do Depen foi apresentada, explica Maia, entidades de direitos humanos têm apresentado “argumentos fundamentados de como é uma prática degradante e desumana, que corresponde à tortura e que não deve ser implementada no Brasil”.
“É muito desumano pensar no uso desse tipo de estrutura para colocar pessoas dentro, ainda mais nas condições que foram apresentadas, em celas de 6m para 4 pessoas, em celas de 12 metros serem colocadas 10 pessoas”, explica.
A pesquisadora lembra outro episódio negativo do uso de contêineres no Brasil: a morte dos dez adolescentes, de 14 a 16 anos no Ninho do Urubu, o centro de treinamento do Flamengo. “A precariedade fica evidenciada no episódio desse incêndio. Os jovens dormiam em contêineres quando o incêndio ocorreu”.
Para ela, o uso desse tipo de estrutura também é uma forma de enriquecer empresas que já estão lucrando com a privatização dos presídios.
“A gente precisa entender que o cárcere não é apartado da sociedade, ele é parte da sociedade, várias pessoas passam por ele diariamente. Não olhar para a saúde das pessoas que estão lá dentro significa também não olhar para a saúde de toda a sociedade, porque um colapso dentro do cárcere significa um colapso fora do cárcere”, finaliza Maia.
*Matéria feita por Jeniffer Mendonça, João Frey e Paloma Vasconcelos, em parceria do Congresso em Foco com a Ponte Jornalismo
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