O impeachment de Dilma foi armado por um poderoso bloco de forças empresariais, partidárias e midiáticas, tendo como pano de fundo a crise econômica e o mal-estar popular generalizado. Mas não abre qualquer esperança de mudança. Estamos em tempos destituídos de utopia.
Ao contrário, pela natureza do governo Michel Temer e o perfil do seu ministério, teremos a manutenção do que há de pior no nosso Estado oligárquico de precarização de direitos, de corrupção sistêmica, de conservadorismo cultural e de repressão política, com criminalização dos movimentos sociais. Saudosistas da ditadura, arautos da tortura, financistas, latifundiários radicais e fundamentalistas estão em júbilo. Ao ver a composição da equipe de Michel Temer – com investigados na Lava Jato e em outros processos, além de não incorporar a uma única mulher -, lembrei do “golpe da maioridade”, quando o imperador Pedro II foi elevado ao trono com apenas 15 anos, motivando uma quadrinha popular: “Por subir Pedrinho ao trono/ não fique o povo contente/ não pode dar boa coisa/ servindo com a mesma gente”.
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Mas é forçoso reconhecer que o PT do poder, a despeito da militância idealista que se queda deprimida, está colhendo o que deixou de plantar. Incluiu segmentos importantes nos círculos de consumo, mas não estimulou movimentos que promovessem a consciência política. Se de fato empoderou Ministério Público, Polícia Federal e Controladoria-Geral da União, acabou por entrar no conluio da corrupção sistêmica, que vive da promiscuidade entre grandes empresas e contratos públicos. Na perspectiva da reprodução de mandatos, aderiu ao que antes criticara: campanhas milionárias, movidas mais pelo tamanho do bolso do que das ideias. Ninguém se alia com o PTB de Roberto Jefferson, com o PP de Maluf e com o PMDB de Jucá, Cunha e que tais impunemente. O ‘ethos’ mudancista foi cedendo ao peso da institucionalidade conservadora. As fronteiras político-programática e éticas foram perdidas.
O segundo governo Dilma, nos seus estertores, dependeu de deputados “indecisos”, fisiológicos, e de um Waldir Maranhão para se salvar de um complô institucional, do abuso farsesco de um preceito constitucional. Já não tinha mesmo salvação. Desmobilizara as forças sociais de mudança para implementar, muitas vezes, políticas dos adversários. Precisou delas agora, e elas até, quase que heroicamente, começaram a reaparecer, mas já era tarde…
O fim do governo do PT e do PT no governo – que já era, por sinal, muito pouco dele – é triste. Deixa um travo de grande desalento. Mas tem que provocar reflexão na esquerda como um todo. Pede autocrítica e não novo autoengano. No Chile da Unidade Popular de Allende sempre se lembrava que, quando a esquerda se aliava com a direita geralmente era essa, sagaz e experimentada, quem governava. Carlito Maia, publicitário dos tempos em que a criatividade supria a falta de grana, repetia que “quando a esquerda começa a contar dinheiro, já não é mais esquerda”. Paulatinamente, desde 2002, o programático foi sendo engolido pelo pragmático, o verbo pela verba, o poder como serviço pelo poder de mando, a organização de base pelo dirigismo burocrático das cúpulas.
Pertenço a uma geração – que está entrando na quadra final de sua existência – cuja grande conquista histórica foi o enfrentamento e a superação da ditadura (aquela “página infeliz da nossa história”), ainda que com uma transição democrática tutelada pela alta hierarquia militar.
A era Lula/Dilma foi a culminância da chamada Nova República, que não realizou plenamente a radicalização democrática inscrita na Constituição de 1988 – expressão dos ascensos dos movimentos populares, com o bonito protagonismo de trabalhadores, mulheres, negros, indígenas, periferias, favelas, grupos culturais libertários, comunidades eclesiais progressistas. Democracia direta, não só representativa e participativa, cobrada nas ruas, mesmo na forma difusa e confusa das jornadas de junho de 2013. Vivemos os tempos cinzentos de um interregno, em que o velho ainda não acabou de vez e o novo não se firmou.
O impeachment liderado pelos reacionários ameaça muitas conquistas. Os golpes virão, nos direitos, nos movimentos, no obscurantismo com amparo oficial. Reingressamos numa quadra de resistência. Mas a responsabilidade não é só dos que nos derrotaram. É também de quem permitiu, por variadas formas, o fortalecimento dessa correlação de forças tão nefasta.
De nossa parte, continuaremos ao lado de quem sempre estivemos – dos trabalhadores, jovens, mulheres, negros e negras, LGBTs. Incentivaremos sua organização independente e impulsionaremos seus processos de auto-organização.
Chico Buarque e Edu Lobo compuseram uma belíssima música para a peça “O corsário do rei”, do querido e saudoso Augusto Boal. Ela foi a “trilha sonora” da nossa saída do PT (que já saía de si mesmo), há uma década. Ouvi-la hoje continua emocionando: “os soluços dobram tão iguais, seus rivais, seus irmãos/ seu navio carregado de ideais/ que foram escorrendo feito grãos/ as estrelas que não voltam nunca mais/ e um oceano pra lavar as mãos”.
(*) Chico Alencar é professor de História e deputado Federal pelo Psol-RJ.
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