Aline Machado e Paula Bittar *
A reforma político-eleitoral proposta até agora (sem acordo e que talvez seja objeto de consulta popular) está longe de corrigir as distorções na representatividade de gênero. Apesar de propor a lista flexível nas eleições proporcionais com alternância de sexo (a cada grupo de três candidatos, uma candidata), a proposta não inova ao exigir ´candidaturas´ – e não percentual de mulheres eleitas. A lista flexível prevê a possibilidade de o eleitor continuar votando no candidato; apenas os votos no partido serviriam para eleger os nomes nas listas, da forma como apresentados pelas legendas. Assim, mesmo com um terço da lista composto por candidatas, qual a garantia de que ao menos um terço da Câmara terá igual composição?
O aumento do número de mulheres nos espaços de decisões é crucial para a elaboração de uma agenda com políticas voltadas não só para as mulheres, mas para a sociedade. Foi com a primeira mulher eleita para a Constituinte de 1934 (Carlota de Queirós, PC-SP) que a Constituição concedeu o direito de voto às mulheres, ainda que restrito à condição econômica (o Código Eleitoral de 32, editado pelo governo provisório, dizia que a mulher podia “isentar-se de qualquer obrigação eleitoral”). Como resultado das eleições de 2002, com a maior bancada feminina eleita na Câmara até hoje (52 mulheres), foi aprovada a Lei Maria da Penha (2006), com mecanismos de combate à violência doméstica. As eleições de 2006 trouxeram a segunda maior bancada federal feminina (46 deputadas) e a prorrogação da licença-maternidade por dois meses com concessão de incentivo fiscal (2008). A legislatura atual (2011-2014), com 45 eleitas, luta pela extensão da licença-maternidade para as mães que adotam; quer que homens e mulheres sejam igualmente responsáveis pela educação dos filhos e a consequente janela de oportunidade que essa paridade daria às mulheres de crescer também fora de casa, profissionalmente; defende que as mesas diretoras da Câmara e do Senado, e as comissões temáticas das duas casas representem os dois sexos. A legislatura atual também é responsável pela aprovação dos direitos dos empregados domésticos, função majoritariamente exercida por mulheres (em geral, negras) e até então legalmente estigmatizada. São alguns exemplos de como, na questão de gênero, quantitativo se traduziu e se traduz em qualitativo, para as mulheres e para a sociedade.
Nesse quesito, apesar da militância da bancada feminina, o Brasil ´sem gênero´ – ou seja, que não espelha nas esferas de decisão o que as mulheres representam, na população e no eleitorado – nos envergonha nas oportunidades de empoderamento. Na população e no eleitorado, somos mais de 51%. Mas, na Câmara, somos cerca de 9% (no Senado, há 12% de mulheres). Para se ter uma ideia, nossa vizinha Argentina tem 37% das vagas da Câmara ocupadas por mulheres. De toda a América Latina, o Brasil só perde em representatividade feminina nas câmaras federais para o Panamá e o Haiti. Entre os 5.053 prefeitos eleitos, há apenas 505 prefeitas. Internacionalmente, a desvantagem feminina brasileira grita. A União Interparlamentar (IPU) criou um ranking baseado na composição dos parlamentos. Entre 190 países, o Brasil ocupa a 158ª posição.
Foi preciso uma mulher na Presidência da República para que mulheres fossem convidadas, significativamente em número mas muito abaixo da igualdade, a participar – seja chefiando pastas, seja no Supremo Tribunal Federal. Aliás, as eleições gerais de 2010 bateram recorde em número de candidatas a deputada federal e estadual. Muito provavelmente devido à ação da Justiça eleitoral, que exigiu o cumprimento da lei que obriga os partidos a destinarem pelo menos 30% de suas candidaturas às mulheres.
Não nos entendam mal. Temos assistido a certo progresso num Brasil ainda distante da igualdade de gênero. Aprovamos leis importantes (algumas citadas) contra a discriminação da mulher e governantes vêm tomando medidas pontuais buscando a proteção das mulheres (sim, até nos vagões do metrô mulheres são vítimas de abuso). Mas o preconceito continua, na cabeça de homens e mulheres, que cedem aos valores criados e perpetuados pelo poder político-econômico patriarcal para justificar a subordinação. É o caso de juízes que interpretam a lei que seria em defesa da vítima contra a estuprada (“ela provocou”); é o caso de pais, mães, maridos e companheiros que usam de violência psicológica, financeira ou física para assegurar a manutenção do status quo; é o caso de mulheres violentadas até pelos profissionais de saúde que as atendem; é o pedido feminino de “ajuda” para lavar a louça (a função é dela?); são as famílias que criam meninas com direitos e deveres muito distintos dos meninos; são as empresas que, ilegalmente, não disponibilizam creches nem dão ajuda de custo nesse sentido; é a sociedade, a família e os amigos que reagem com estranhamento quando as mulheres comunicam que não desejam filhos; são os anunciantes, regidos pelo mesmo poder político-econômico patriarcal, que “valorizam” a mulher destituída de opinião; são as redes privadas de TV, que alimentam a mesma lógica perversa que, dia após dia, inunda a cabeça de homens e mulheres e é passada – com raros e públicos questionamentos – de geração em geração.
As pesquisas apontam para o fato de que, no Brasil, a pobreza é feminina, negra e jovem. Por isso é tão importante a designação de políticas afirmativas. Segundo o último relatório mundial do Fórum de Davos, na Suíça, o Brasil ´sem gênero´ ocupa a 62ª posição de desigualdade entre os sexos. Significa que, comparativamente, mais brasileiras morrem ao buscar atendimento de emergência, em partos e esperando por eles; que ficamos doentes ou morremos desassistidas ao engravidar e nos vermos obrigadas a optar pela clandestinidade do aborto ilegal e precário; que empresas ainda tentam cortar custos irregularmente, reduzindo salários na contratação de mulheres para funções antes ocupadas por homens; que somos pouquíssimo representadas onde as decisões do país são votadas e viram realidade… O que podemos fazer a respeito?
De volta à reforma política, precisamos de mulheres nas câmaras e assembleias, de acordo com a representação proporcional. Ou seja, precisamos de cotas para mulheres eleitas ou da lista fechada com a presença de mulheres alternando na proporção de um para um com os homens – já que somos metade da população. Também necessitamos de uma cota social (além do fundo partidário) para o financiamento das campanhas, o que incluiria candidatas e candidatos. Os partidos se comprometeriam com o financiamento das campanhas pobres de recursos, dando visibilidade mínima à plataforma de cada um. Com a obrigatoriedade da presença das mulheres na política, os partidos também teriam que capacitar suas candidatas em ações e estratégias (uma das reclamações dos líderes partidários é que não existem mulheres interessadas ou preparadas). Como historicamente a influência econômica é masculina, as cotas para eleger mulheres, aliadas ao financiamento partidário das campanhas socialmente excluídas, corrigiriam mais rápido do que alguns séculos a situação marginal de gênero brasileira. Quem sabe, num futuro próximo, o imaginário popular do que seria uma “mulher pública” seja modificado, para significar apenas o feminino de “homem público”.
Referência de pesquisa:
Palavra de mulher: oito décadas do direito do voto, organização e textos de Débora Bithiah de Azevedo e Márcio Nuno Rabat. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2011.
* Paula Bittar, jornalista formada pela Universidade de Brasília, trabalha na TV Câmara desde 2009.
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