Nicole Verillo *
Sou mulher, gestora de políticas públicas, metida no mundo da política, atualmente ocupando o cargo de gerente de Estratégia Governamental na Secretaria de Planejamento e Gestão de Osasco (Seplag), que não só tem uma secretária mulher (porreta, guerreira e com uma história de orgulhar qualquer uma) a frente, como tem mais de 50% de seu efetivo formado por mulheres. Meu salário é o mesmo dos meus companheiros no mesmo cargo, o debate é horizontal e nunca nenhum homem aqui questionou minha capacidade, pelo contrário, muitas vezes me incentivam a assumir papéis e ocupar espaços que eu mesma achava que não seria capaz. No último dia 8, ganhamos um Rap das Minas, composto por eles, como reconhecimento do machismo que nós enfrentamos e da nossa luta diária. Sim, eles reconhecem seus privilégios, apoiam o feminismo e tão junto na luta.
Só não é tão lindo assim porque essa realidade dura até o momento em que atravessamos a porta da nossa secretaria e começamos a lidar com o resto da gestão pública e do mundo político. Só não é perfeito porque esse meu cenário real, que deveria ser a regra, é, ainda, uma exceção no Brasil inteiro. Por isso, fui atrás de mulheres, que como eu, ocupam espaços dentro desse mundo, em cargos de gestão pública e liderança política, e que seguem, silenciosamente, derrubando preconceitos e desconstruindo paradigmas. E como a ordem é de levantarmos a nossa voz, essa coluna tem a voz delas!
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Nossa sociedade foi construída sob a égide do machismo, do patriarcalismo, onde o homem sempre ocupou o espaço público e, apesar dos avanços, o espaço político ainda é muito fechado entre os homens e é bastante desigual. São diversos desafios (não exclusivos desse nosso mundo, mas é dele que tô falando aqui) relacionados ao sexismo e ao machismo: diferenças salariais, desqualificação, desvalorização de profissões consideradas femininas, assédio, entre muitos outros.
Ser mulher na política é ser, se não a única, minoria em muitos espaços. Para Érika Marques, Assessora na Secretaria Municipal de Gestão de São Paulo, “ser mulher na política é por si fazer política. É lutar para conquistar espaço num lugar dito masculino para ser ouvida e respeitada”. É estar em ambientes quase sempre machistas, que não levam sua opinião em consideração, não lembram seu nome, não olham nos seus olhos e se dirigem a você como a auxiliar de tal pessoa. Eu vivi isso na pele mais intensamente quando, no meu trabalho anterior, eu vivia nos corredores do Congresso Nacional, onde senadores e deputados SEMPRE se dirigiam a mim como se eu fosse a ajudante dos homens com quem eu estava.
O ambiente político, majoritariamente masculino, por si só, é um desafio simbólico difícil de ser quebrado. Uma amiga, que também trabalha com planejamento e gestão, disse que apesar de estar em um local composto majoritariamente por mulheres, a máxima de que os homens são melhores dá o tom. Outra colega de outro órgão municipal relatou uma anedota muito simbólica, que representa bem o quanto as estruturas do poder público não estão preparadas para as mulheres em posições de decisão: “Quando assumi meu atual cargo, fui preencher manualmente uma nova ficha no RH. No campo ‘título’, escrevi ‘Coordenadora’. Um funcionário me orientou a refazê-la, pois o nome do cargo é ‘Coordenador’”, relatou.
Às vezes a sensação que dá é de que quanto mais direitos e espaços nós conquistamos, mais resistência se tem por parte dos homens. Teresa Cristina Matos, Analista Agrária do Incra, já teve que encarar até mesmo uma denúncia falsa de improbidade administrativa contra ela, simulada por colegas homens que queriam impedir que ela assumisse o cargo de gestora da instituição.
Muitas vezes acredito que eles realmente não estão preparados para assumir essa posição de igualdade pela qual tanto lutamos. E aí somos nós, por nós mesmas. E se nós não nos enxergarmos exercendo esses cargos de liderança, de gestão e de coordenação, ninguém nos enxergará.
Além dos questionamentos sobre nossa capacidade, ainda é muito comum o assédio por meio de palavras desrespeitosas, olhares invasivos, piadas machistas, julgamento estético ou até mesmo pedidos de favores e assédio moral e sexual. Os elogios, muitas vezes, vêm por “Que linda que você é”, “Que gracinha” ou frases semelhantes, que não são bem o que buscamos como reconhecimento profissional.
Encarar isso, faz com que, muitas mulheres mudem de postura, de forma reativa, para tentar desconstruir estereótipos e impor respeito. Melina Rombach, minha colega de departamento aqui na Seplag, por exemplo, diz que ela chega a planejar o tipo de roupa que irá usar para determinadas ocasiões a fim passar seriedade e evitar olhares sobre o seu corpo. “Outro enfrentamento é estabelecer distância e não permitir certos comentários e conversas que considero desrespeitosas”, diz.
Esther Leblanc, coordenadora-adjunta na Coordenação de Direito à Cidade da Prefeitura de São Paulo (PMSP), conta que em reuniões de trabalho, quando integrava a Secretaria de Relações Internacionais e Federativas da PMSP, sentia necessidade de usar óculos, prender o cabelo e colocar salto alto para não se sentir “menininha”. “Lembro de uma reunião externa, com três homens mais velhos, entrando na sala e dizendo ‘não sabia que íamos ser recebidos por uma menina tão bonita’”, conta. Jovita José Rosa, Agente Administrativa do Ministério da Saúde, já teve até que “se afastar de colegas que de ‘brincadeira’ soltavam piadas constrangedoras e algumas vezes até terminar a amizade para não partir para uma briga desgastante”, conta.
Recorrer a argumentos técnicos e fundamentar suas falas com mais rigor do que os homens, ou “diminuir a simpatia e aumentar o jeito enfático de falar para imprimir respeito”, também são posturas que Vanda de Paula, gerente de Convênios e Projetos aqui da Seplag, já teve que adotar.
“Temos que fazer muito mais para provar nossa capacidade. Você precisa se impor de verdade, deixar claro que você não é um pedaço de carne que está ali para agradar os olhos dos outros, como um objeto. No meio político me sinto assim, às vezes. Tive que aprender a me impor pra ocupar os espaços, apesar dos olhares de reprovação”, desabafa Jessica Pavan, outra colega de departamento aqui da Seplag.
Porém, essas mudanças reativas de postura, que nos fazem nos sentirmos mais confortáveis e confiantes para ocupar esses espaços, não podem ser ausentes de autocrítica, pois elas podem não ser (ou pelo menos não deveriam ser) a melhor tática de enfrentamento. “As mulheres têm que ser respeitadas no âmbito de trabalho independente se são mais ou menos simpáticas, ou da roupa que estiverem vestindo. Construir legitimidade profissional e passar a ser integrada nos círculos de poder e tomada de decisões, é um desafio que requer persistência de anos, resiliência, imposição de voz e enfrentamento direto nos espaços majoritariamente dominados e com maioria numérica de homens brancos”, arremata Melina.
Claro, que não são poucas às vezes que temos vontade de, literalmente, gritar, “rodar a baiana, soltar os cachorros” e fazer o discurso inflamado e verdadeiro que temos pronto dentro de nós. Mas dentro dos nossos trabalhos, das lideranças que exercemos, preferimos ocupar esses espaços com nossos olhares, nossas vozes, nossas lutas, nossas posições e nossa força, criando política. Com certeza! Lideranças femininas trazem preocupações, pautas e lutas para as políticas públicas que lideranças masculinas não só não se atentam, como em muitos casos são contrários”, diz Érika.
E ocupar esses espaços não exige só enfrentamento, mas também responsabilidade. Não podemos parar e precisamos estar juntas, estabelecendo parcerias reais e sinceras. “Compartilhar o espaço com outras mulheres, encorajá-las não só pelo exemplo, mas de forma ativa, a tomar a frente de projetos, reuniões, articulações”, coloca Fernanda Campagnucci, Cordenadora de Promoção da Integridade da Controladoria-Geral do Município de São Paulo.
Para Melina, “a força ‘coletiva feminina’ cria uma dinâmica no ambiente de trabalho de apoio mútuo entre as mulheres que pode constranger e evitar comportamentos machistas, inibindo assédios e auxiliando na construção da legitimidade profissional”.
Legitimidade essa para desenhar políticas (públicas e institucionais) e construírmos os caminhos que acreditamos, da forma como acreditamos para transformar a sociedade. Com liberdade e igualdade para seguirmos na luta sendo as mulheres que nós gostaríamos de ser, estando com quem nós gostaríamos de estar e fazendo o que nós gostaríamos de fazer.
Sozinhas andamos bem, mas juntas, andamos melhor.
Vamos?
* Agradeço às mulheres que, além de contribuír diretamente para essa coluna respondendo minhas perguntas, me inspiraram e me fortaleceram com cada resposta: Ana Caroline de Aguiar, Daniella Enéas, Érika Marques, Esther Leblanc, Fernanda Campagnucci, Helena Marcon, Iara Domingos, Jessica Pavan, Jovita Rosa, Laurilia Hansen, Lívia Carvalho, Lívia Maria Siqueira, Melina Rombach, Patrícia Anette, Silmara Meireles, Sofia Reinach, Teresa Cristina Matos e Vanda de Paula.
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