A professora Eneá de Stutz e Almeida, da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), é a primeira mulher a presidir a Comissão de Anistia, do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania. Criado em 2002, o comitê tem como objetivo promover a reparação a perseguidos políticos entre 1946 e 1988. Em seu segundo ano de gestão, Eneá e demais integrantes do grupo analisaram quase 1.500 recursos protocolados entre 2001 e 2010 e concederam oito anistias coletivas. Um salto em relação a 2023, quando menos de 80 casos foram julgados.
Mesmo com o avanço em sua área, a presidente da Comissão de Anistia considera que o governo Lula tem uma posição “errática” em relação à ditadura. A professora disse que ficou perplexa ao ser informada pelo Ministério dos Direitos Humanos de que o presidente Lula havia proibido qualquer ato oficial para relembrar os 60 anos do golpe militar de 1964.
Para Eneá, Lula acertou ao garantir as condições para a comissão restabelecer seus trabalhos, após quatro anos de vácuo no governo Jair Bolsonaro. Mas precisa ir além. “Vejo o comportamento do governo brasileiro atual como errático. Um pouco na dúvida sobre como proceder. Só pode ser isso. Fiquei muito surpresa em março deste ano quando tive a notícia, na época dada pelo próprio ministro Silvio Almeida, de que não poderia haver evento alusivo de memória do golpe de 1964 por determinação do presidente Lula. Fiquei surpresa com essa decisão. Não é para passar borracha, não é para esquecer, é para lembrar para que nunca mais aconteça”, defende a professora em entrevista exclusiva ao Congresso em Foco.
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A presidente da Comissão de Anistia alerta para o risco de o país tentar apagar as barbaridades da ditadura da memória nacional. “Quando houve essa ordem para que tudo fosse cancelado, fiz críticas porque fiquei muito surpresa, chocada. Perplexa. Como assim? Não é para falar sobre isso? A gente precisa falar sobre isso. Depois disso houve uma coisa ou outra, mas não eventos oficiais do governo federal nesse sentido”, lamenta.
Acerto de contas
Na avaliação de Eneá, a falta de responsabilização do Estado brasileiro em relação aos agentes militares que perseguiram, torturam e mataram pessoas durante a ditadura (1964-1985) por motivação política está por trás da recente tentativa de golpe de Estado articulada após a derrota de Jair Bolsonaro em 2022.
Passados 40 anos da redemocratização, o Brasil ainda não curou suas feridas. “Não fizemos a responsabilização criminal dos violadores dos direitos humanos. Isso passa mensagem para a sociedade que tudo bem alguém atentar contra a ordem democrática, abolir o Estado Democrático de Direito e dar golpe, porque não vai acontecer nada. Isso lá atrás não foi punido”, diz a presidente da Comissão de Anistia. “A gente não pode esquecer e tem de lembrar para que isso não se repita. Assim como Israel está sempre lembrando oficialmente o Holocausto”, sugere.
Na avaliação dela, o país amarga os efeitos de uma transição democrática inacabada. “Esses mecanismos incluem o direito à memória, à verdade, à reparação integral e à reforma das instituições e a responsabilização dos envolvidos inclusive no campo penal. No Brasil a gente usou as ferramentadas da memória, da verdade e da reparação integral. A comissão responsável pela reparação integral é a Comissão e Anistia. Mas a gente praticamente não fez reforma nas instituições. Não mexemos nas Forças Armadas.”
Mudança no ministério
A professora enfrentou dificuldade no meio do ano, quando acabou o orçamento anual da Comissão de Anistia, o que inviabilizava o transporte de integrantes do comitê para Brasília. Naquele momento, lembra ela, praticamente não havia diálogo com o então ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida. A situação melhorou com a chegada da ministra Macaé Evaristo, ressalta Eneá.
“O meu diálogo com a ministra foi ótimo, o canal de comunicação com o ministro Silvio, na parte final da gestão dele, estava um pouco difícil. Dificuldade de acesso, de alinhamentos, no final de junho e ao longo de julho e agosto, estava bem difícil o contato com o gabinete. Com a mudança, está fluindo perfeitamente. A ministra Macaé tem sido muito presente e atendeu a todas as demandas feitas”, explica. Uma realocação de recursos do gabinete da ministra para a comissão garantiu a continuidade dos trabalhos até o final do ano.
Veja a íntegra da entrevista:
Congresso em Foco – Diferentemente de outros países vizinhos, como Argentina, Uruguai e Chile, o Brasil ainda não conseguiu acertar as contas com o passado da ditadura militar. As autoridades brasileiras têm medo dos militares?
Eneá de Stutz Almeida – Existe um tema que pesquiso e escrevo que é a justiça de transição. A transição é uma convenção internacional de mecanismos que cada país tem de utilizar. E aí precisa atualizar o conjunto de ferramentas para passar de uma situação de conflito ou ditadura ou segregação, como na África do Sul, que tem conflito dentro do país, para um Estado Democrático de Direito. No caso brasileiro, como passar da ditadura para a democracia. Uma das primeiras coisas é o novo ordenamento jurídico e constitucional. No Brasil, tivemos a Constituição de 1988, mas isso foi insuficiente. Esses mecanismos incluem o direito à memória, à verdade, à reparação integral e à reforma das instituições e a responsabilização dos envolvidos inclusive no campo penal. No Brasil a gente fez, usou as ferramentadas da memória, da verdade e da reparação integral. A comissão responsável pela reparação integral é a Comissão e Anistia. Mas a gente praticamente não fez reforma nas instituições.
Por que não?
Não mexemos nas instituições de segurança pública, nas Forças Armadas. Não fizemos a responsabilização criminal dos violadores dos direitos humanos. Isso passa mensagem para a sociedade que tudo bem alguém atentar contra a ordem democrática, abolir o Estado Democrático de Direito e dar golpe, porque não vai acontecer nada. Isso lá atras não foi punido. Na redemocratização não aconteceu nada. Ao contrário, o último ex-presidente da República era um contumaz defensor da ditadura e do próprio AI-5, defensor de tortura e não aconteceu nada. A mensagem é: se você quiser tentar dar golpe de Estado, o máximo que vai acontecer é nada. Isso é muito nocivo porque perpetua o trauma da violência. O Brasil é um país com história de violência muito grande desde sempre. Temos 524 anos de muita violência de cima pra baixo. Sempre foi assim. Essa imagem de brasileiro como cordial não corresponde à realidade. Quando a gente começou a trabalhar a ideia de redemocratizar o Brasil, veio a nova Constituição como esperança. A Constituição de 1988 é a carta dos sonhos do povo brasileiro. Era momento de muita esperança de reconstruir uma nação, de refazer os laços de confiança entre sociedade civil e Estado. A partir da Constituição, com os instrumentos legais dados por ela, o Estado brasileiro precisava colocar em prática essa transição. Isso foi feito até certo ponto. A transição no Brasil é inacabada, incompleta.
E quais os efeitos disso?
No ano de 2013 começou a explodir esse tipo de violência, uma violência que está dentro de cada um de nós, que a gente não consegue explicar a origem. Naquelas manifestações de 2013 milhares de pessoas iam para a rua soltar um grito engasgado na garganta. As pessoas entrevistadas nem sempre conseguiam dizer o que estavam reivindicando. Era uma coisa difusa na maior parte das pessoas. Está ruim, não dá para confiar em ninguém, porque esses políticos são assim e assado. Uma revolta difusa porque essa violência não foi trabalhada e virou trauma. Todas as violações de direito acontecidos na ditadura precisam ser trabalhadas pela sociedade. Um trauma individual ou coletivo, se não é trabalhado, vira recalque. Existe uma figura que é o esquecimento recalque. É o que a gente tentou fazer no Brasil, o que o Estado tentou fazer.
Como assim?
É fazer de conta que não aconteceu nada. Vamos deixar para trás, não vai trazer ninguém de volta. Vamos passar uma borracha. Todo recalque volta e sempre volta com muita violência. Esses recalques coletivos explodiram e voltaram com muita violência em 2013. Em 2016 teve o impeachment. Aí deu uma acalmada, a gente continuou não trabalhando essas coisas, a gente recalcou ainda mais e aumentou o nível de violência em muitos setores da sociedade. Resultado: acampamentos nos quartéis, muitos querendo guerra civil, 8 de janeiro. Queriam reivindicar, mas para acontecer o quê? Os militares têm de nos salvar… salvar de quê? É uma revolta difusa para muita gente. Não dá para responsabilizar essas pessoas exclusivamente porque o próprio Estado criou essa desconfiança. Hoje a gente, a sociedade civil, não confia no Estado. Ninguém confia no Estado. A gente vê como qualquer ação do Estado com a sociedade com um pé atrás: o que fulano está pretendendo? Querem nos enganar.
Como o Estado pode recuperar essa confiança?
Exatamente trabalhando esses traumas que o próprio Estado criou no passado. Só usando esses mecanismos da justiça de transição é possível chegar a um estágio de relação de confiança mínima da sociedade brasileira com o próprio Estado para alcançar a reconciliação nacional. Sem trabalhar esses mecanismos, é impossível trabalhar essa confiança e a reconciliação nacional. Tudo que está acontecendo hoje nos últimos dois anos é fruto da transição inacabada, mais um legado negativo, ruim, nocivo à sociedade brasileira pela violação dos direitos humanos.
O filme “Ainda estou aqui” jogou luzes sobre o desaparecimento político na ditadura militar, ao retratar o caso do ex-deputado Rubens Paiva. Que efeito um filme de sucesso como esse pode causar no debate sobre o assunto?
Todas essas iniciativas são pedagógicas. O filme é muito bem feito e sensível. Ele está prestando esse serviço de trazer a debate. Não é que as pessoas têm de aprender e entender que o que aconteceu foi isso e aquilo. A questão é a gente conversar sobre o que aconteceu. A gente precisa ter acesso a informações sobre tudo o que aconteceu. O filme pode servir como gatilho para suscitar o debate nacional. Acredito que já está acontecendo. Por isso, as anistias coletivas são muito importantes. Porque elas também têm capacidade de provocar o debate. Por exemplo, não sou da família do Rubens Paiva, não era vizinho dele, não tinha relação com ninguém da família dele, o que tenho a ver com isso? Tudo, porque sou brasileiro.
Se o Brasil tivesse se acertado com o seu passado, como fazem países vizinhos como a Argentina, o Chile e o Uruguai, teríamos maior proteção em relação a essas investidas golpistas?
Toda essa conversa que está havendo em cada canto sobre investigações, o relatório da Polícia Federal, o filme, todos são muito positivos. Quanto mais conversa sobre tudo o que aconteceu, melhor. Só trabalhando esses traumas, conversando sobre os traumas que a gente coletivamente consegue fazer a terapia e ter o cuidado necessário conosco mesmo nessa relação da sociedade com o Estado para chegar a esse estágio de reconciliação nacional.
Hoje acusados de participar dos atos golpistas de 8 de janeiro pedem anistia, mas com outro sentido, para eles próprios …
Acho muito didático que isso esteja acontecendo. Muita gente que conheço e trabalha com essa temática acha ruim. Acho bom, porque abre possibilidade pra gente esclarecer o que a gente fala de anistia política. Quando a gente fala de anistia está falando de esquecimento. Anistia remonta à palavra amnésia, que é esquecimento. Se faço anistia fiscal, significa que ela nunca existiu. Esse é o significado jurídico. O instrumento anistia politica que é também instrumento jurídico tem uma classificação dupla. Tanto pode ser anistia de esquecimento, que é passar borracha, essa é anistia que está sendo pedida e constando do projeto de lei da extrema direita. Essa anistia de esquecimento é também chamada de autoanistia. Elas são proibidas pela convenção americana da qual o Brasil é signatário. Ela não pode existir no Brasil. Se esse projeto fosse aprovado no Congresso, hipótese absurda, não poderia prosperar, teria de ser anulada pelo STF porque as leis de autoanistia são proibidas pelo nosso ordenamento. Outro tipo de anistia política é uma anistia política de memória. Essa é a anistia que aconteceu em 1979. A lei que criou e regula a Comissão de Anistia regulamenta o artigo 8º da Constituição. A Comissão de Anistia trabalha a memória, não o esquecimento. Acho ótimo que esteja acontecendo esse debate. É importante termos a anistia de memória no Brasil. Ao mesmo tempo, me somo a todas as pessoas que gritam sem anistia. Anistia de esquecimento gera aquele recalque.
Qualquer projeto de anistia dessa natureza é inconstitucional?
Os ministros Luis Roberto Barroso e Alexandre de Moraes se manifestaram falando da estranheza com esse projeto de anistia para golpistas. Como vai anistiar se eles não foram condenados? Como ter anistia se não teve condenação? É possível fazer anistia sem condenação se for uma lei de autoanistia, se for de esquecimento, de apagar os fatos. O que eles estavam dizendo era que, na ordem constitucional brasileira, só é possível anistia de memória. Não adianta nada para essas pessoas que não foram nem condenadas. Não há como falar em anistia de memória se não teve condenação. Ela não apaga os fatos, ela realça os fatos. Precisamos de museus e memoriais que ressaltam os efeitos da ditadura. Por isso temos museus do holocausto, não podemos esquecer para nunca mais acontecer. A anistia de memória valoriza essas marcas de memória. A anistia de esquecimento quer apagar tudo e jogar para debaixo do tapete e não se fala mais nisso. No nosso ordenamento não é possível ter anistia de esquecimento, só de memória.
Como a senhora vê a posição do governo Lula em relação à ditadura?
Vejo o comportamento do governo brasileiro atual como errático. Um pouco na dúvida sobre como proceder. Só pode ser isso. Fiquei muito surpresa em março deste ano quando tive a notícia, na época dada pelo próprio ministro Silvio Almeida, de que não poderia haver evento alusivo de memória do golpe de 1964 por determinação do presidente Lula. Fiquei surpresa com essa decisão. Não é para passar borracha, não é para esquecer, é para lembrar para que nunca mais aconteça. O presidente Lula se houve muito bem ao recompor a Comissão de Anistia e criar as condições para o funcionamento dela. Mas, em setembro do ano passado, nos 50 anos do golpe no Chile, tivemos três ministros brasileiros em Santiago. Eles discursaram que, no ano seguinte, o Brasil completaria 60 anos do golpe, e faríamos eventos, museus e memoriais para que a sociedade brasileira tivesse acesso a essas informações e não esquecesse. Era uma data muito importante para ser lembrada. Alguns eventos começaram a ser organizados. Quando houve essa ordem para que tudo fosse cancelado, fiz críticas porque fiquei muito surpresa, chocada. Perplexa. Como assim? Não é para falar sobre isso? A gente precisa falar sobre isso. Depois disso houve uma coisa ou outra, mas não eventos oficiais do governo federal nesse sentido. Não lembro de acompanhar evento oficial alusivo aos 60 anos. Houve vários eventos da sociedade, inclusive, o que é bom, positivo.
Houve algum tipo de reprimenda?
Não tive notícia de reprimenda feita pelo governo em relação a pessoas do governo que tivessem participado desses eventos. Mas senti falta, sim, de eventos oficiais promovidos pelo governo federal, alusivos a essa data. A gente não pode esquecer e tem de lembrar para que isso não se repita. Assim como Israel está sempre lembrando oficialmente o holocausto. Se tem qualquer manifestação em qualquer lugar do planeta que possa parecer elogio ao nazismo, há manifestação oficial em sentido contrário, de qualquer tipo de valoração positiva dos crimes cometidos pelos judeus, da mesma forma o Brasil precisa manter a posição oficial do Estado brasileiro. A gente teve uma Comissão Nacional da Verdade que afirmou que, em 1964, teve golpe de Estado no Brasil, que se seguiu uma ditadura, e isso foi muito ruim. Essas três coisas precisam estar na posição oficial do governo brasileiro quem quer que esteja no poder. É uma questão de Estado. Isso não se discute. O governo tem de reafirmar e celebrar para o povo brasileiro o tempo todo isso.
Quais as consequências de não falar sobre isso?
Há certo receio de incentivar esse tipo de debate porque vai que as pessoas entram em algum tipo de relação mais conflituosa. Mas isso é ilusão. Olha, teve problema entre a gente lá atrás e aí a gente não fala mais. Se a gente não fala isso, adoece. O povo brasileiro está com alma adoecida, porque não é incentivado a curar suas feridas e seus traumas, e me parece que é um dos deveres de cada governo que assume cuidar das pessoas. Esse cuidado existe inclusive por conta da comissão. Sinto falta de um cuidado maior, de uma ousadia maior, para a gente enfrentar de uma vez por todos esses fantasmas.A gente só vai conseguir virar a página se conseguir ler essa página. Já tenho lido desde o ano passado que existe esse receio. Mas honestamente me parece um receio infundado.
Por quê?
Como o ministro Múcio sempre repete, são aliadas da democracia, a serviço do Estado para defender a democracia, e não perseguidores do povo brasileiro. Se isso aconteceu no passado, é errado. Daqui para frente vamos passar nossa história a limpo e consertar as nossas contas com o Estado brasileiro e a sociedade brasileira. Alguém pode ser punido, ser preso, sofrer algum tipo de sanção penal? Pode. Mas não é isso que estamos fazendo com os militares que supostamente agiram de forma errada em 2022, vamos fazer esse acerto de contas. É importante para a imagem das Forças Armadas. Muita gente radical tem dito que temos de acabar com as Forças Armadas. Cria esse tipo de desconfiança. Até para recuperar o prestígio e a confiança, as Forças Armadas são instituição importante para a democracia. Por isso é importante fazer no Brasil esse acerto de contas. Não vejo qual seria o receio. Inclusive no ano passado havia pressão para recriação da Comissão de Mortos e Desaparecidos. O ministro Múcio disse que as Forças eram favoráveis. Várias vezes vi manifestação dele nesse sentido. Dizia que não tinha nada contra. Não era nem para perguntar. Não podia esperar nada diferente da concordância. Tudo em prol da defesa da democracia, de passar nossa democracia a limpo. Se não fizermos esse dever de casa, não vamos chegar a uma repacificação nacional, a gente aprofunda e torna os traumas mais complexos. Para curar isso, é muito mais difícil.
A Comissão de Anistia aprovou no início do mês uma anistia coletiva para 5 mil funcionários da Panair do Brasil, companhia aérea fechada pela ditadura militar. Que tipo de importância esse tipo de ação tem?
A gente só começou a julgar esse tipo de reconhecimento este ano, o caso Painair é o oitavo que julgamos. Todos foram deferidos. A gente tem protocolados mais três. Isso tem um efeito pedagógico fundamental. Atinge número maior de pessoas, atinge um coletivo e tem a enorme vantagem de ser proibida a reparação econômica, não pode ter indenização nas anistias coletivas. Isso é excelente porque demonstra que os processos julgados pela Comissão de Anistia são de reparação simbólica. O que mais importa é o símbolo, não o físico. Até a indenização é simbólica, alguém que era estudante, foi torturado e morto, a família vai receber R$ 100 mil. Esse valor indeniza alguém pela morte de um familiar? Não. Parece até deboche dizer que esse é o valor que o Estado está pagando por um ente querido. Até no campo econômico é simbólica a reparação. Essas reparações todas são integrais. Isso significa que vai muito além de um dinheiro. Esses requerimentos ajudam a contar a história que aconteceu naquele grupo, com esse tipo de grupo. Povos indígenas, aconteceu com todos. A violência tem sido direcionada a esse tipo de coletivo. Isso aconteceu com muitos grupos diferentes. Isso é didático e dá oportunidade de discutir esse tema, tem as recomendações. São as demandas daquele coletivo em relação ao Estado brasileiro.
O Conselho Nacional de Justiça determinou que os cartórios assinalem, nos documentos de óbito de vítimas da ditadura, que elas foram mortas em decorrência da perseguição do Estado brasileiro. Qual a importância dessa decisão?
É uma medida fundamental que chega atrasada. Há muitos anos essa responsabilidade deveria estar sendo assumida pelo Estado. É inacreditável como o Estado brasileiro tem receio ou anda muito devagar com a assunção das suas responsabilidades. No campo da reparação temos dados importantes. Mas no campo da responsabilização, penal, está muito devagar ainda. Temos passos a dar em especial com o STF, esclarecendo que, desde 2010, o tribunal entendeu que a Lei de Anistia, de 1979, é uma lei de memória, por isso está em vigor e é compatível com a Constituição de 1988. Só pode ser compatível com os princípios fundamentais por ser uma lei de memória, isso significa dizer que os responsáveis por tortura e assassinato de presos políticos podem ser responsabilizados penalmente porque não foram anistiados. A decisão do CNJ me parece muito acertada e excelente para consagrar mais uma vez que o Brasil não pode nunca esquecer que durante os anos 60 e 70 se tornou uma ditadura, para que isso nunca mais aconteça.