Por ocasião dos dez anos da ocupação americana no Iraque, este não será uma espécie de resumo tampouco um balanço superficial da efeméride, mas uma quase-síntese do pensamento de Naomi Klein, esta brilhante pesquisadora e ativista canadense, condensado em um dos mais importantes capítulos do seu livro A Doutrina do Choque – a ascensão do capitalismo de desastre (Rio, Nova Fronteira, 2008) onde faz um relato, dos mais completos e fundamentados, das motivações profundas – dos norte-americanos – e das não menos fundas e arrasadoras consequências – para o Iraque e seu povo – desta invasão.
Sem contar que ela esteve lá, em 2004, acompanhando como tudo começou.
Naomi abre o texto afirmando que o direito à busca do lucro ilimitado sempre esteve no coração da ideologia neoconservadora. Diante da Guerra ao Terror, a perseguição de tais objetivos corporativistas se acirrou, tornando-se aquela um excelente pretexto (ou “janela de oportunidade”). Sem dúvida, os falcões de Washington estão comprometidos com o papel imperial dos EUA no mundo e com Israel no Oriente Médio. É impossível separar esse projeto militar – guerra interminável no exterior e Estado de segurança no plano doméstico – dos interesses com o complexo do capitalismo de desastre, que construiu uma indústria trilionária.
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Aliás, nos campos de batalha do Iraque, essa fusão entre objetivos políticos e lucrativos ficou mais clara do que em qualquer outro lugar do planeta.
Em março de 2004, Naomi esteve em Bagdá e viu que as coisas não estavam indo nada bem, já no hotel. Preocupada com os planos de privatização da economia iraquiana pós-invasão, obteve a seguinte resposta: “Ninguém aqui está preocupado com privatização, a sobrevivência é tudo o que nos preocupa!”. Ao que ela respondeu que a venda daquele país para a Bechtel e a ExxonMobil já estava sendo implementada pelo enviado especial da Casa Branca ao Iraque, a autoridade provisória de coalizão (CPA – Coalition Provisional Authority), L.Paul Bremer III.
Durante meses, ela cobrira o leilão dos ativos estatais iraquianos em eventos comerciais realizados em salões de hotéis, onde vendedores com coletes à prova de bala garantiam:
“O melhor momento para investir é quando ainda há sangue no chão!” (sic).
Mas, voltando à Bagdá em 2004, Naomi explica: realmente não era surpreendente ter dificuldade em encontrar pessoas interessados na economia iraquiana. Os arquitetos daquela invasão acreditavam piamente na doutrina do choque – sabiam que enquanto os iraquianos estavam consumidos pelas bombas e outras exigências do cotidiano da guerra, como a falta de água, comunicações, transportes e alimentos, o país podia ser leiloado na surdina, discretamente e quando os resultados fossem anunciados seriam un fait accomply .
A “doutrina do choque” consiste no fato de que a violência extrema acaba nos impedindo de perceber os interesses que estão por trás. E as explicações para a guerra podem ser resumidas a três palavras: Petróleo, Israel e Halliburton. Mas a invasão do Iraque foi justificada oficialmente para o distinto público com base no medo das armas de destruição em massa que poderiam estar nas mãos de Saddam Hussein. Uma balela, que, logo a seguir, foi descoberta.
Outra justificação oficiosa: o déficit regional de democracia de livre mercado. Aliás, a onda de livre mercado até então havia se desviado dessa região por várias razões. Os países mais ricos – Kuwait, Arábia Saudita, Emirados Árabes – eram tão pródigos em dinheiro do petróleo que conseguiram evitar o endividamento e as garras do FMI. Opostamente, o Iraque tinha uma grande dívida, acumulada desde a guerra do Irã, mas, assim que começou a era da globalização, a primeira Guerra do Golfo acabou, o Iraque foi colocado sob rígidas sanções: não apenas o “livre comércio” seria proibido, como não havia nenhum comércio legal. Na medida em que o mundo árabe inteiro não poderia ser conquistado de uma só vez, um primeiro país serviria como catalisador, e o escolhido foi o Iraque. Dentro dessa lógica – lutar contra o terrorismo, expandir a fronteira capitalista e realizar eleições se embalou num único pacote.
George W.Bush simplificou essa agenda numa única frase: “espalhar a liberdade numa região problemática”. Porém, trata-se daquele “tipo diferente de liberdade”, a mesma que foi oferecida ao Chile em l973 e à Rússia nos anos 90 – a liberdade para as multinacionais do Ocidente se apropriarem dos Estados recém-privatizados – esse era o núcleo da teoria modelo.
Thomas Friedman estava seguro quanto ao significado da escolha do Iraque como modelo: “Não estamos fazendo o trabalho de construção de uma nação no Iraque. Nós estamos CRIANDO uma nação a partir do zero!” – como se a procura por uma grande nação árabe, rica em petróleo, para criar do zero, fosse uma coisa natural, e até nobre, a se fazer no século XXI.
Vamos deixar bem claro: o Iraque não era um espaço vazio no mapa; era e continua sendo uma cultura tão antiga quanto a civilização humana, com feroz orgulho antiimperialista, forte nacionalismo árabe, crenças profundamente enraizadas e grande parte da população masculina adulta possuidora de treinamento militar.
Se a “criação de uma nação” ia acontecer no Iraque, o que seria da nação que JÁ EXISTIA ALI? Simples. Simplesmente era que grande parte do país deveria desaparecer a fim de limpar o terreno para o grande experimento – uma ideia que continha, em seu cerne, a certeza duma violência colonialista extraordinária.
Nas análises acerca da guerra do Iraque, a conclusão é de que a invasão foi um “sucesso”, mas a ocupação, um fracasso. O que esta afirmação esquece é que invasão e ocupação são os dois lados da mesma moeda duma estratégia unificada – o bombardeio inicial foi destinado a limpar a tela sobre a qual a “nação-modelo” seria construída.
Na próxima coluna, teremos: “A guerra como tortura em massa”
Me aguardem.
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